Quem foi o quadrinista que ensinou nossos avós a trepar

Mulher nua

Aviso: esta matéria pode apresentar conteúdo sensível para algumas pessoas.

O ritual era sempre o mesmo, com pequenas variações. A clientela masculina olhava para os lados, se dirigia à banca e nela permanecia por longos minutos, simulando interesse pelo que via nas prateleiras. O pai de família, a caminho do escritório, apanhava o jornal do dia; seu filho, ao voltar do colégio no início da tarde, provavelmente levaria o último número de Batman ou Superman. Notícias e heroísmo, a bem da verdade, eram meros invólucros para outro tipo de produto, que permaneceria atrás do balcão enquanto o cliente não revelasse seus verdadeiros intentos – comprar um catecismo.

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O catecismo era um gibizinho mambembe, por assim dizer. Seu formato almejava a discrição: tinha, em média, 12 centímetros de altura, 16 de largura e, quase invariavelmente, 32 páginas, cada qual com um único quadro. Cabia no bolso de uma calça e estava fadado a passar toda a sua curta vida pulando de esconderijo em esconderijo – o miolo de outras publicações, o estrado da cama, fundos de armários ou gavetas e, cedo ou tarde, a lata do lixo.

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Zéfiro e o prazer feminino: “Tu hoje estás mais grosso, mais durinho!” Imagem: reprodução

As precauções tinham fundamento. É que, a despeito do codinome cristão, os catecismos não eram lidos em igrejas. Suas páginas mal impressas costumavam ser folheadas mais livremente nas privadas dos banheiros domésticos, e continham sexo, muito sexo – o sexo mais explícito e desavergonhadamente brasileiro que um pai de família e seu filho ginasiano poderiam vislumbrar em papel.

Surgidos nos anos 40, em gráficas clandestinas do Rio de Janeiro, os catecismos se popularizaram no início da década seguinte e, a partir de então, foram se difundindo na ilegalidade por todo o território nacional. Os exemplares mais cobiçados do mercado vinham com a assinatura de um certo Carlos Zéfiro – cronista talentoso, desenhista naïf e, acima de tudo, uma grande incógnita.

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João Cavalo, um caipira de pau gigantesco, se masturba e penetra uma cabra. Imagem: reprodução

Até o início da década de 90, nada se soube a respeito do quadrinista, muito embora seu nome já tivesse estampado as capas de pelo menos 600 gibis (alguns, produzidos por imitadores que se apropriavam da grife). Debilitados pela importação de revistas pornô europeias e pela chegada dos filmes de sexo explícito em VHS, os catecismos nem de longe gozavam da mesma força de outrora. As especulações sobre Zéfiro, porém, só faziam crescer. Em 1991, três reportagens se propuseram a solucionar o enigma.

De acordo com o jornal carioca A Notícia, Carlos Zéfiro (“padroeiro das melhores punhetas da sua adolescência”) era ninguém menos que Eduardo Barbosa, veterano desenhista de quadrinhos bíblicos da editora Ebal – os gibis da Série Sagrada, que prestava homenagem a santos católicos, eram quase todos de sua autoria. “Com 78 anos”, informava o repórter Sérgio Dantas, “ele ainda dá no couro”.

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Helena, “aquela satânica mulher”, introduz o parceiro ao bondage e à inversão de papéis. Imagem: reprodução

A matéria, publicada no dia 27 de setembro, teve repercussão pífia. Duas semanas depois, o programa Documento Especial, da TV Manchete, desautorizaria Barbosa como “falso Zéfiro”. A emissora tentou chegar à verdadeira identidade do artista, mas Hélio Brandão, ex-editor de catecismos e dono de um sebo na capital fluminense, anunciou que só revelaria a informação mediante pagamento.

Em novembro, a revista Playboy enfim anunciava: “Acabou o mistério de trinta anos”. Zéfiro, segundo reportagem de Juca Kfouri, era pseudônimo do carioca Alcides Caminha – datiloscopista aposentado do Ministério do Trabalho, parceiro musical de Nelson Cavaquinho e um velho amigo de Barbosa, a quem o texto retratava como oportunista, traidor e alcoólatra.

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Catecismos sobre a família tradicional brasileira. Imagens: reprodução

Caminha morreu oito meses depois, aos 70 anos, vitimado por um infarto. Seus últimos dias foram os de uma celebridade: deixou-se fotografar ao lado das coelhinhas da Playboy, atraiu multidões à Primeira Bienal Internacional de Quadrinhos do Rio de Janeiro e deu entrevista no programa Jô Soares Onze e Meia, do SBT. “Eu me sinto mais ou menos recompensado por todo o sacrifício do passado”, declarou ao apresentador na ocasião.

Nem todo mundo engoliu suas palavras: por muito tempo, o jornalista Gonçalo Junior acreditou que Caminha estivesse mentindo. Em 2017, ano em que cidadãos de bem e eunucos da alta cultura protestavam contra o sexo nos museus brasileiros, ele decidiu escrever um livro para provar que Barbosa seria o verdadeiro Zéfiro. Durante a pesquisa, mudou de ideia e concluiu que as credenciais pertenciam, de fato, ao funcionário público aposentado.

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Alcides Caminha, vulgo Zéfiro, dando entrevista a Jô Soares nos estúdios do SBT. Imagem: reprodução/ YouTube

As investigações resultaram na biografia O Deus da Sacanagem (Editora Noir, 2018). Ao longo de 384 páginas fartamente ilustradas, o autor se debruça sobre a vida pessoal de Caminha, descreve a gênese da imprensa pornográfica no país e analisa as sucessivas ressignificações do mito zefiriano – de tutor sexual da juventude a ícone underground.

Em seu escritório na Praça da Sé, centro de São Paulo, Gonçalo recebeu a VICE para uma entrevista.

VICE: Quais são as lembranças mais antigas que você tem sobre Carlos Zéfiro?
Gonçalo Junior: Em 1983, quando editei meu primeiro fanzine, tive contato com muitos outros leitores de quadrinhos – uma grande comunidade. Havia adolescentes como eu, que curtiam super-heróis, mas também caras adultos, senhores de 70 anos que escreviam sobre HQs das décadas de 20 e 30. Diversos fanzines publicavam matérias sobre quadrinhos eróticos, quase sempre citando Zéfiro, às vezes até reproduzindo trechos de catecismos. Através dessas matérias, descobri O Quadrinho Erótico de Carlos Zéfiro, o livro que Otacílio Barros [o Ota, cartunista e editor mais conhecido por seu trabalho na revista Mad] havia escrito sobre ele. Por volta de 1985, o livro finalmente caiu na minha mão.

E que impressão aquilo causou em você?
Para mim, aquilo era uma afronta, uma obra totalmente subversiva. Eram quadrinhos que questionavam a moral e atacavam todas as instituições. Zéfiro me parecia um Robert Crumb radicalizado. Eu achava aquilo o máximo.

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Capa do livro O Deus da Sacanagem, de Gonçalo Junior. Imagem: divulgação (Editora Noir)

Quando surgiu a ideia do livro?
Foi em julho de 2017. Tenho uma coleção bem antiga de catecismos, dezenas de exemplares originais, as capas todas amareladas. A Lilia Schwarcz [historiadora, antropóloga, professora da USP e curadora-adjunta do MASP] me pediu alguns emprestados para aquela exposição sobre sexualidade, que acabou gerando muita polêmica ao ser proibida para menores de 18 anos. Passamos uma tarde inteira conversando, ela fazia perguntas e tomava notas. Quando ela foi embora, pensei: porra, por que não escrevo um livro sobre Carlos Zéfiro?

Você tinha alguma tese a respeito dele?
Minha ideia inicial foi provar que Alcides Caminha não era Zéfiro. A figura dele nunca me convenceu.

Qual foi sua reação às aparições dele no final de 1991?
Quando saiu a reportagem da Playboy, eu tinha uns 22 anos e cursava jornalismo. Li e não acreditei. Depois, assisti à entrevista dele no Jô Soares e o achei muito frágil. Era tudo vago demais: ele não se lembrava de quem imprimia os catecismos, desconhecia os dados sobre tiragens, dizia ter destruído todos os originais. Já Eduardo Barbosa sabia o nome dos gráficos, dos distribuidores, onde as revistas eram impressas, o bairro, tudo. Por que não seria o Barbosa?

E como foi que você mudou de ideia?
Eu entrevistei a irmã de Caminha, e ela foi muito convincente. Contou histórias sobre a adolescência do irmão, o gosto que ele tinha pelo desenho já naquela época, e também sobre a amizade de Caminha com o marido dela, um colecionador de catecismos. É impossível que uma senhora de 90 anos seja tão teatral, quase três décadas após o irmão ter sido revelado como Zéfiro. Ela acabou se tornando minha principal fonte, e a partir de seu depoimento escrevi a história de Alcides. Mas não deixei Eduardo Barbosa de fora. Tentei fazer justiça. Barbosa foi detonado publicamente como bêbado e falsário, mas o próprio Caminha admitiu que ele fazia parte do processo. Na verdade, a engrenagem que movia os catecismos era formada por três pessoas: Alcides Caminha escrevia e desenhava; Eduardo Barbosa fazia a arte final e também alguns desenhos; o livreiro Hélio Brandão imprimia e distribuía nos pontos de venda. Esse era o tripé Carlos Zéfiro.

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Suzete, uma senhora desquitada, relembra suas aventuras sexuais com o balconista Mauro. Imagem: reprodução

Foi difícil lidar com essa dicotomia entre Zéfiro, o pornógrafo lendário, e Caminha, o sujeito pacato da repartição?
Tentei não lidar com essa pessoa comum, e sim com o artista altamente subversivo que ele era. Tento colocar Alcides no mesmo patamar de um Crumb, um Bukowski, um Henry Miller. Era um grande artista subversivo travestido de funcionário público. Ele não foi um gênio do traço; enquanto desenhista, sempre foi tosco e nunca evoluiu. Por outro lado, tinha um texto altamente explosivo, imoral, indecente. Suas histórias iam contra os valores da família e o sufocamento que as religiões provocam na vida das pessoas – essa desgraça de felicidade celestial, de banir o tesão e o sexo em nome de uma recompensa divina. A moralidade brasileira sempre foi muito religiosa, e as religiões tendem a ser hipócritas – todas elas, sem exceção.

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A disputa pelo corpo da freira leva um fiel católico a esmurrar a cara do padre. Imagem: reprodução

Em certo momento, o livro descreve a admiração de Caminha por quadrinistas americanos dos anos 30, como Hal Foster [criador do Príncipe Valente] e Alex Raymond [criador de Flash Gordon]. Você consegue enxergar vestígios dessas influências nos catecismos que ele produzia?
Sim. Tenho plena convicção de que Zéfiro recorria ao decalque. Digo isso porque sou um desenhista frustrado e incompetente. Quando criança, minha ansiedade para produzir quadrinhos era tão grande que eu acabava decalcando algumas cenas. E Zéfiro fazia a mesma coisa: ele decalcava gibis antigos, fotonovelas, quadrinhos românticos, revistinhas mexicanas de amor. Na hora de finalizar, incluía seios, vaginas, pênis e bundas. Eram verdadeiras colagens, com muitos erros de proporção e anatomia.

Os enredos de Zéfiro se passavam nas mais diversas localidades do Brasil. É possível dizer que eles traçam uma cartografia sexual do país?
Caminha viajava muito, e parte da inspiração vinha daí – o trabalho dele era fazer encaminhamento de imigrantes para fazendas e zonas de emprego. Ele também tinha receio de ser identificado como um artista carioca. Para dar uma disfarçada, criava histórias ambientadas em Pernambuco, Manaus, Sergipe, Santa Catarina. Mas os enredos eram todos muito parecidos.

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Sexo grupal, homossexualidade masculina e luta de classes: “Fiz o patrão ficar de joelhos sobre a poltrona e enrabei-o”. Imagem: reprodução

Como você caracterizaria a abordagem do sexo nesses quadrinhos?
Caminha atravessou diversas fases. A princípio, ele produzia catecismos por questões financeiras. Em seguida, passou a fazer por gosto. Depois, acabou se tornando o cara que confrontava os valores morais, criando histórias de incesto, zoofilia, de padres transando com freiras. A partir dos anos 80, acredito eu, ele deve ter percebido que tinha admiradores. Mas Zéfiro foi sempre educativo: as mulheres dele eram cheias de desejo, buscavam o prazer e gozavam sem culpa.

Não acha curioso que a imprensa só tenha se interessado por Zéfiro no momento em que ele saiu de cena?
No começo, a imprensa não foi capaz de perceber esse fenômeno. Catecismo era coisa de adolescente, coisa de periferia. Não havia entre jornalistas uma leitura mais abrangente da sexualidade, a iniciativa de se desvendar Zéfiro como um artista transgressor que atacava as tradições da família. Havia apenas o rótulo de pornografia e sacanagem barata. Isso começou a mudar nos anos 80, graças ao Pasquim, que promoveu uma releitura artística, histórica, sociológica e comportamental dos quadrinhos de Zéfiro. A partir daí, as pessoas começaram a se perguntar quem era aquele cara que fazia a molecada se masturbar.

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Quadro de Xexéu, exibido no topo da matéria, um dos 600 catecismos atribuídos a Carlos Zéfiro entre as décadas de 40 e 80. Imagem: reprodução

O livro está sendo bem recebido?
É o best-seller da editora. Até agora não me amaldiçoaram, nem me chamaram de tarado ou punheteiro. Mas estou quase virando um historiador da pornografia. No futuro, ainda quero fazer um livrão de mesa, gigante, capa dura, 700 páginas, todo colorido, contando a história das revistas de sacanagem no Brasil. É um projeto caro, acho que ninguém vai querer patrocinar. Talvez algum fabricante de camisinhas acabe topando.

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