Música

Techno em Família: Uma entrevista com os Saunderson

Quando encontrei Kevin Saunderson no backstage do Movement Festival numa tarde chuvosa de maio, ele em uma mesa com toda a sua família no lounge dos artistas, arrepiando um jantar antecipado. Recostado na cadeira, ele me cumprimenta com um sorriso caloroso e me apresenta sua esposa Sharmeela, bem como sua filha de idade escolar, que aperta minha mão toda fofa. Do outro lado da mesa, seu filho de 25 anos Dantiez acena com a cabeça, ao passo que seu outro filho, DaMarii, de 27 anos, chega alguns minutos depois e larga sua mochila numa cadeira, como se tivesse acabado de chegar da escola.

Enquanto eles fazem piadas e se lambuzam com um algum rango coberto de molho barbecue servido em pratos descartáveis, fica claro que os Saundersons são uma turma bem unida, mas essa conexão familiar toda vai muito além dos jantares alto-astral.

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Após anos acompanhando seu pai em shows, Dantiez e DaMarii começaram suas carreiras como DJs e produtores aos vinte e poucos anos. Até o momento, eles já remixaram sons de nomes como Green Velvet e Carl Craig, além de lançarem faixas originais em selos como Defected, Nervous, e claro, o longevo selo de seu pai KMS, em que Dantiez também trabalha como chefe de A&R. No começo de junho, Dantiez lançou um EP chamado Radiator em parceria com Joe Mesmar e Mr. Bizz.

No Movement deste ano, os rapazes tocaram juntos sob a alcunha Saunderson Brothers no palco THUMP e foram co-headliners de uma afterparty da KMS com seu pai e Robert Hood se apresentando como Floorplan. Ao passo que eles seguem profundamente ligados ao techno de Detroit do qual seu pai foi pioneiro, Dantiez e DaMarii também afirmam se inspirar em contemporâneos que levaram o som tradicional da cidade além, como Seth Troxler e Marco Carola.

Após o jantar, enquanto caminhamos pela área dos artistas, Saunderson faz pequenas pausas para cumprimentar todos que conhece. Sua voz grave ecoa pela sala quando, brincando, fala de seus filhos ao perguntar aos amigos “Já conheceu meus irmãos?”. Nos sentamos numa mesa no canto da sala para falar sobre o que aprendemos ao cair nas pistas junto com a família e as diferenças entre as gerações de DJs de Detroit.

THUMP: Kevin, você costumava entrar escondido em boates como Paradise Garage e Loft em Nova York junto de seus primos na adolescência. Como era isso?

Kevin Saunderson: Eu não entrava escondido. Eu tinha 17 anos, mas barbado parecia ter 21 e aí me deixavam entrar. Ia com um primo mais velho — ele me levou a uma boate pela primeira vez com alguns de seus amigos. Vi os caras dançando e pensei “uau, isso é massa!” e quando estávamos indo embora ainda achávamos que era noite porque estava escuro lá dentro, mas já era meio-dia do outro dia.

Esse lance de boates e música sempre foi algo que você fez com sua família?

Kevin: De leve. Minha mãe queria ser cantora, até cantou com as Marvelettes antes de estourarem, elas estudaram juntas. Meu irmão mais velho, Ron, era tour manager do Brass Construction [conjunto funk do Brooklyn] e então foi tocar na Sky [banda de funk/R&B de Nova York], já que o Brass Construction, BT Express e Sky tinham alguns integrantes em comum. Ele estava lá quando os sintetizadores e o MIDI começaram a aparecer.

Quando comecei a entrar nessa de música, ele me aconselhava no que comprar e como usar. Era complicado demais ler os manuais de equipos da Roland porque o inglês neles era terrível de se entender… Eu não tinha ideia do que estava fazendo.

Esse lance todo de música eletrônica não tem nada a ver com rebeldia pra gente. É só família — DaMarii Saunderson

Dantiez e DaMarii, levando em conta que seu pai é um DJ famosíssimo, qual o significado da cultura raver para vocês? Ainda é algo rebelde ou é coisa de família?

DaMarii Saunderson: Com certeza é um lance familiar, algo que vivemos juntos. Antes, não me via sendo influenciado [pela carreira de meu pai]. Mas quanto mais comecei a sair com ele e ver o que ele fazia — como controlava a galera — aquilo me inspirou. Esse lance todo de música eletrônica não tem nada a ver com rebeldia pra gente. É só família.

Dantiez, você começou ouvindo EDM, certo?

Dantiez Saunderson: Comecei a ir em boates bem tarde. Além das poucas as quais [meu pai] me levou e o Movement, que ia todo ano porque ele tocava, não comecei a sair até depois do ensino médio, aos 18 ou 19 anos. EDM era o que bombava na época, com o tempo acabei chegando no som que curto agora, na cena underground.

DaMarii: Eu curtia esportes e jogava baseball, mas aí deu ruim e estava atrás do que fazer depois disso, então comecei a viajar com meu pai.

Que programas e equipamentos vocês usam em seus sets de DJ e produção? Como vocês diriam que seus estilos se diferem?

Dantiez: Começamos com o Traktor e controladoras [pros sets de DJ]. Pra produção vamos de Ableton e [DaMarii] mexe com Logic.

DaMarii: Falando de estilos enquanto DJ, pegamos influência de [nosso pai] e incorporamos, mas temos cada um o tipo de som que curtimos, que talvez ele não toque. Todos temos gostos diferentes.

Dantiez: DaMarii é mais obscuro, profundo e techno. Eu já vou num esquema mais funkeado, meio soul, pegada house, mas também curto techno.

Kevin, você diria que o mercado de DJs mudou para seus filhos? Que desafios os DJs de hoje enfrentam em comparação à sua época?

Kevin: Acho que a principal mudança é a diversidade de estilos. Hoje você precisa escolher seu nicho — não tem muitos DJs de house que tocam trap ou DJs de trap que tocam techno ou house. É preciso encontrar o seu próprio caminho e é um desafio decidir isso.

É mais complicado do que quando comecei. A música tinha um impacto mais forte [naquela época], porque tinha menos som rolando. Se você lançava um disco bom, todo DJ acabava tocando ele. Agora tem tantas maneiras [de se descobrir música] que é impossível sacar todos os discos.

Vocês fazem música juntos? Como é esse processo colaborativo?

Kevin: Dantiez agora é membro do Inner City e trabalhamos numa faixa nova chamada “Good Luck” que acaba de ser lançada, estamos trabalhando em outras também.

Dantiez: Às vezes todos chegamos no estúdio em horas diferentes e mandamos nossos projetos uns pros outros. Já fizemos coisas juntas ali, um na bateria eletrônica e outro cuidando dos sintetizadores.

Kevin, você fica no pé dos garotos?

Kevin: A coisa muda de figura quando você tem filhos. Antes era só eu fazendo o que tinha pra fazer pra terminar meus sons. Agora se Dantiez ou DaMarii estão trabalhando em algo, eu faço sugestões, mas não me meto muito a não ser que precise mesmo.

Ser seu filho com certeza é uma pressão brutal, Kevin. Dantiez e DaMarii — vocês se veem procurando territórios musicais diferentes para escapar disso?

Dantiez: Eu tenho todo um histórico com hip-hop, então você vai ouvir muito disso e 2-step no que faço, mas não é algo que saiu assim de cara. Tem que ter paciência pra achar seu som.

Você acha que rola um intervalo muito grande nas gerações de DJs de Detroit? A galera das antigas e os mais novos se apoiam?

Kevin: Sendo bem honesto, nem sei se os caras se falam! Quando cresci, todos os DJs estavam em todas as baladas. Piravam no som e se inspiravam nos outros DJs.

Deixa eu te dar um exemplo: quando eu quis ser DJ, Derrick May me apresentou para Art Payne e Keith Martin que tinham essas pick-ups Technics 1200. Eu tinha que pôr minhas mãos naquilo. Derrick chegou e disse “Esse é o meu brother Kevin, ele é massa”. Daí ficava de rolê com os caras, mexia nas pick-ups, ouvia o som deles, fazia uma fita ou só ia lá no apartamento deles pra ficar numa boa. Não era só eu — mais uns 20 caras tipo o Eddie Folkes estavam por ali, era o começo do movimento.
Não sei se é assim hoje. Parece que cada um está no seu canto, fazendo seus esquemas. Não há essa ligação e apoio, mas essa é só minha visão.

DaMarii: Eu concordo. Podemos até buscar inspiração nos caras das antigas, mas na maior parte do tempo é cada um no seu quadrado.

Dantiez: A cena está um pouco saturada. É quase uma moda — todo mundo quer ser DJ e sair na frente, mas acho que ainda rola um bom apoio, especialmente de quem você admira e respeita na cena.

Colaboro com muita gente, mas é uma parada que ficou meio panelinha demais. Tem várias comunidades competindo, não é só house e techno, hoje temos trap e EDM.

Mas tem também a internet e comunidades se formam no SoundCloud e Facebook, não só nas cidades em que moramos.

Kevin: Hoje é bem mais fácil fazer parcerias. Antes você tinha que ir na casa da pessoa ou entrar no estúdio juntos. Hoje é mais tranquilo. Estou trabalhando em uma faixa com KiNK e mando trechos do que fiz e ele me manda o que fez [pela internet]. É legal.

Você acredita que a mesma cena poderia ter se formado caso houvesse internet naquela época?

Kevin: Com certeza. Tudo começou com a instrumentação eletrônica. Mexer com aquilo permite que você crie. Na época não haviam muitas colaborações. Você tinha seu equipamento e fazia seus sons. Quando ouvia os sons de Derrick ou Juan pensava quero fazer algo assim! Tempo não era um problema.

Kevin, você sempre foi meio futurista — acho que em uma entrevista você até falou que Detroit é uma cidade futurista por ter vivido a revolução tecnológica primeiro. Você se sente da mesma forma em relação ao futuro?

Kevin: Acho que o futuro precisa acontecer, pois queremos um amanhã independente do que aconteça. A tecnologia também poderia acabar com tudo isso — todos nós mortos em minutos. Mas temos que acreditar no futuro, evoluir como seres humanos, senão como iremos pra frente?

O bom da dance music é que ela une as pessoas. Cor ou raça não importam — é para todos. É um clima feliz e isso é ótimo para todos. É simples, nem precisa ter uma mensagem, você se junta em prol de um mundo aberto e positivo.

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