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Μodă

A cave voadora

As míticas irmãs Castilho lançaram-se nos finais da década de 70 no Porto.

Fotografia por Nuno Miranda As míticas irmãs Castilho lançaram-se nos finais da década de 70 no Porto, cidade granítica, escura e a gozar os primeiros encantos da pós-revolução. Foram modelos, anorécticas, punks, criadoras de moda, personagens imaginárias da longa-metragem que dirigem: a sua própria vida. Rumores de vício em anfetaminas e uma relação incestuosa são vestígios públicos das suas histórias. Criaram peças bizarras: sarcófagos convertidos em camas, luvas de látex sem dedos, mangueiras que viraram cintos. Actualmente, encarnam Targus e Volpina. Quem abriu a porta foi Targus, o toureiro matador da banda desenhada de Oxo, La Mort Amoreuse, que enfrenta criaturas fantásticas, montadas em touros robustos. De seguida, por trás dela surgiu uma loira, de nome Volpina, sex-symbol raptada a Amarcord de Fellini. A sua aparência era rica e volúvel: se as botas pesadas e arrastadas sugeriam o movimento punk, o preto das roupas de cowboy lembrava um estranho universo gótico; se a maquilhagem realçava a beleza vampírica, as lentes de contacto opacas carimbavam o terror. A entrada claustrofóbica empurrou-me para uns degraus que se diluíam num corredor escuro. Fui encaminhado para outro lado da casa. O trajecto foi orientado por Targus. “Vem por aqui”, convidou apontando para umas escadas que desciam em forma de caracol. Injectaram-me educadamente no seu antro, em parte, privando-me de absorver a paisagem tumular que me acompanhou desde que cheguei. Descendo até à cave pude livremente desfrutar do cenário. Dividia-se entre o que parecia ser um cabaret privado e uma sala de experiências, onde se destacava um busto de lábios pintados a vermelho e, ao canto, uma velha máquina de costura. Era uma espécie de museu caótico, bem tratado e vigiado, tal como as suas vidas. Enquanto nos apresentávamos, um gato que se roçava pelos degraus desceu até nós. Foi no “Jet Plane” — nome que elas dão ao seu cabaret —, com copos de cerveja na mão, sentados na cama, espelhos de um lado e coleiras do outro, que demos início à conversa. “Enrolas um charro?”, perguntou-me Targus. Já estávamos a fumar quando Targus me questionou se sabia o nome que ela usava nos anos 80. “Dr. Narcurvis”, esclareceu. A sonoridade egípcia do nome foi, como sublinhou, influência do produtor de hip-hop Egyptian Lover, autor do lendário tema “Allezby Inn”. A vida das Castilho está atolada de personagens, casais excêntricos e imaginários que elas vestem e encarnam, consoante as suas necessidades. Um deles é especial, pela sugestão cómica: Napoleão Bonaparte e Cicciolina. Um par que se conheceu e apaixonou em Ibiza, numas férias do imperador. “Quisemos dar a volta à revolução francesa”, disse Targus.

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Fazem-no na perfeição: transformar tudo o que gira à sua volta, seja uma simples pulseira, um apartamento em Paris ou uma revolução francesa. As atribuições que a nossa percepção constrói são constantemente postas à prova, reflectindo uma necessidade das irmãs em transmutar o sentido das coisas, em chicotear a realidade. Esta atitude, a que Targus chama “dangerously free”, foi revelando algo maior, uma dimensão colateral, com vida própria, lembrando às vezes o que os franceses denominam por folie-à-deux, uma realidade idealizada e vivida a dois. A conversa passou para Ibiza, início da década de 80. Foi aqui que se deu o primeiro grande salto na vida delas. Passaram de duas jovens felinas, com cio, a estrelas da noite. “Tudo começou no momento em que mergulhámos nuas na piscina de uma discoteca. Ficámos famosas e fomos convidas por um jornal de Ibiza para um ensaio fotográfico, mas o fotógrafo foi deportado ou coisa do género. Depois começámos a fazer decoração de festas. E, no segundo ano que voltámos a Ibiza, fizemos roupas de plástico. Foi aí que começaram as primeiras roupas e acessórios”, contou Volpina. Um detalhe interessantíssimo: as irmãs detestavam moda antes de chegarem a Ibiza. A ilha mediterrânica foi uma espécie de incubadora, onde perceberam o potencial que a moda oferece a quem quer transformar o mundo. Cobriram os outros com as suas ideias e tornaram-se centro de atenções. E conheceram gente, muita gente. Namoraram, consumiram, frequentaram festas, tudo num saudável exagero. Foram, durante anos, uma referência da excentricidade nocturna da ilha. Houve um curto regresso ao Porto — com desvio por Barcelona, onde fizeram montras — para ingressar na escola de moda Gudi. O Porto foi, apesar de algum desdém, a cidade onde cresceram e a que sempre regressaram. Embora tenham passado por Lisboa enquanto modelos — com muita coca à mistura —, foi no Norte que viveram grande parte do tempo, partilhando a casa com a família e estabelecendo o seu território na cave. Mas o Porto era muito pequeno para o seu universo em expansão e, rapidamente, foram convidadas para estudar em Paris. “Submarino” era como gostavam de carinhosamente chamar o seu apartamento parisiense, num 16.º andar. Este submarino foi reconfigurado, paredes e armários destruídos e remontados num estilo próprio, sarcófagos transformados em camas. Estavam no auge da sua fase trash. O que se ensinava nas escolas de moda, desde as tendências ao estilismo, não interessava às irmãs. Comecei realmente a perceber o que as Castilho pretendiam da moda: a invenção de personagens. Criavam-nas para suportar as suas vidas, mais do que para sustentar a simbiose caótica de uma cisma punk. Elas precisavam de um saco de boxe à medida dos seus delírios. Isso demonstra o humor e sarcasmo com que sempre trataram as questões ligadas à moda.

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“Detestávamos a escola. Lembro-me de estarmos a trabalhar sobre tendências e de nesse exercício darem-nos abaixo de zero, por termos feito um trabalho com cores quentes chamado Latin Blood. Na época estava tudo a fazer cenas em cinzento e nós exagerámos nas cores quentes”, explicou Volpina. A partir daí, Paris foi uma festa. As visitas aos desfiles, atraindo os fotógrafos com as suas criações — como a fase cibernética das roupas de plástico do Dr. Narcurvis e da sua enfermeira —, ou “os pequenos-almoços com mulheres que tinham o chapéu maior que a mesa do café”, o meu detalhe preferido. Transformavam o cenário num animado deboche. Em grande parte das suas vidas, principalmente em Paris, a atitude irreverente era, segundo Targus, originada “pelo amor à arte”, mas trazia uma necessidade mascarada — arreliar a moda como se ela fosse a personificação da aparência, de um mundo estéril e catatónico. Esta insistência teve um preço elevado, como referiu Targus: “Entrámos numa fase mais autista, onde produzíamos, basicamente, para nós. Passávamos dias seguidos a criar, sem dormir, só com Dinintel.” Targus e Volpina tiveram sempre uma relação próxima com as drogas. Curtiram muitos anos, tantos quantos foram anorécticas, 30. O cardápio é extenso: Prozac, a que adicionavam noz de cola e conhaque; Dinintel, às vezes misturado com Rohypnol; ácidos, até Targus entrar em coma e descobrir que era alérgica; cocaína; e por aí fora. O facto de se referirem a essas histórias com prazer aliviou-me, porque não há nada mais aborrecido do que arrependimentos tóxicos. À medida que conversávamos, a nossa cumplicidade aumentava — o número de cervejas na mesa também — e dei por mim preocupado com a fragilidade delas. Fiquei menos angustiado quando me referiram a dieta actual: fruta, legumes, carne, yoga. Numa subida à casa de banho, consumido pela cerveja e já com a sanita na mira, fui surpreendido por outro gato preto, curioso e atento a todos os meus gestos. Olhámos um para o outro e, rapidamente, como se nos tivéssemos sentido envergonhados, voltámos costas e afastámo-nos. Mas antes de descer, por momentos, tive a casa só para mim. As imagens desfocadas que gravei à chegada ficaram nítidas. O silêncio era pesado e vigilante. Olhei em volta, curioso — uma casa de avó. A da minha era assim. A começar pelo cheiro, uma espécie de incenso que só o tempo exala, as mobílias geometricamente mumificadas e as tradicionais fotos espalhadas como bibelôs. A luz tímida reprimida por persianas semifechadas era chupada pela madeira escura e gasta do chão. Definitivamente, não era este o cenário que esperava encontrar. Ali em cima era o universo da normalidade. Um dos episódios que marcou o regresso definitivo das irmãs ao Porto foi a abertura de uma loja num pequeno centro comercial em Cedofeita. A loja tinha, de acordo com Targus, a clara intenção de "gozar com o mercado”. Havia de tudo um pouco: roupa, objectos sado-maso, acessórios — como uns brincos feitos com molas de colchão prateadas — que atraíam povo. Desde os mais famosos, como Catarina Furtado, que insistiam em comprar a originalidade das Castilho, a trovadores de qualidade duvidosa, que usavam a loja e o centro comercial como palco para as suas performances. A loja, pelo seu estilo, foi vista como um culto à profanação. “Ainda chegámos a ter problemas, porque houve um abaixo-assinado dos vizinhos a dizer que se passavam cenas estranhas”, recordou Targus, explicando que “isso não era verdade, só se tocava guitarra e fumava”. Acredito em Targus, como acredito que, juntas, as irmãs propagam uma energia invulgar, de sensações contraditórias. Assim se explica que as histórias relatadas, quase todas nocturnas, fossem sempre ambíguas.

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Se foram espancadas à porta de uma discoteca por uma mera boquilha de cigarro recusada, ou se “as pessoas se afastavam e mudavam de passeio” quando se cruzavam com elas, também eram vistas como raros e exóticos animais noctívagos que interessava convidar para adornar as festas. Além de decorarem os locais de culto da noite portuense, as irmãs passavam horas a dançar. Targus fazia-o constantemente, ao ponto de "ter orgasmos a dançar". Um monge tibetano — a quem relatou o sucedido — vislumbrou nesta experiência uma boa alternativa às drogas. Nas discotecas, aproveitavam para desfilar as suas criações: coleiras de cão transformadas em cintos, chapéus de cowboy, texanas — não as que se compravam nas lojas. “Eram sapatos a que acrescentávamos bicos, ou socas raspadas até ficarem pontiagudas”, disse Targus. O próprio Nick Cave admitiu, depois das irmãs se terem infiltrado nos camarins do Coliseu: “Your shoes are much nicer than mine.” Na mesma noite, nomeou-as como as mais bonitas drag queens que já vira. Mas para uns quantos, muitos, elas foram sempre pessoas de quem se queria distância, como se fossem anúncios vivos do apocalipse. Para Targus, há pouca gente capaz de as compreender ou, como preferem dizer, “grokar” — termo extraído do livro Um Estranho Numa Terra Estranha, de Robert Heinlein. Enquanto do outro lado da cave as irmãs conversavam, aproveitei para me aproximar de duas imagens na parede, mais pequenas e discretas. Uma era do pai, fardado, a outra era de Ramana Maharshi, um filósofo hindu que eu sabia importante para elas, depois de ter visto o vídeo Learn Baby Learn, de Carina Rafael — onde as irmãs casam a aberração, o grotesco, com uma mensagem espiritual, um nirvana que será alcançado, segundo Targus, “com trabalho interior e muita meditação”. Foi estranho associar este discurso à imagem que cultivam. Relacionava-as com uma espécie de culto luciférico, sádico, de cores vermelhas, ao jeito de Latin Blood. Mas a fé, palavra que evitam usar, foi abalada quando Targus, anos antes, deitada naquela mesma cama e jurando que “não estava cacetada”, sentiu Ramana Maharshi comunicar. O que lhe disse não me contou, mas “mais importante do que o ter como guru, foi tê-lo ‘grokado’”, salientou. Esta aparição marcou a viragem para uma vida espiritual e de desenvolvimento interior, como alguns sonhos já faziam prever: “Era sempre às seis da manhã que começava a sonhar. No primeiro sonho, havia uma águia a voar em círculos, sentia-me mesmo uma águia e havia montes de livros, que se estavam a abrir, a desmanchar. Depois, no segundo sonho, estava muita gente e era só fogo, havia pessoas que caminhavam com andas, para fugir ao fogo. Restaram três: eu, a Volpina e, se não me engano, Deus. Depois tinha uma torre onde estava o Diabo, que me oferecia o ovo da eternidade. Perguntei de quem era. Aí, a Volpi disse-me que era da serpente. E eu não aceitei.” A conversa seguiu sempre o trilho das histórias recordadas, eram como a ponta de um icebergue que flutuava algures numa memória distante e coçada, arrastando consigo situações, pessoas e um imaginário fértil, que emergiam e mergulhavam a seu bel-prazer. Permanecer nas profundezas desse mundo foi a única forma de entender o pacto que resultou nesta cópula ilícita. Elas são incestuosamente irmãs. Estava a começar a falar sobre o assunto, quando Targus se adiantou: “Temos uma relação incestuosa. Não passamos uma sem a outra. Foi sempre assim.”

De formas diferentes. “No passado, era uma relação mais carnal, apesar do sexo nunca ter sido um motivo de grande investimento nas nossas vidas”, concluiu Targus, aproveitando para vincar que “houve sempre uma parte espiritual, que resultou numa comunhão amorosa”. O erotismo provocador de determinadas fases insinua uma vida mais devassa, mas, sobre este tema, fui aconselhado por Volpina a entregá-lo à imaginação. Tentaram separar-se duas vezes: uma primeira quando Volpina foi um mês para Londres, e outra quando Volpina foi hospitalizada com pneumonia. Mas foi penoso demais, sobressaindo uma total incapacidade de viverem separadas. Mesmo não sendo gémeas, precisam uma da outra para respirar, sobreviver, mais até do que se fossem. Felizmente para as duas, as suas diferenças complementam-se: Targus, dominadora, é quem usa as calças na relação, é o homem; Volpina é uma gata borralheira, mais submissa, mulher de trejeitos finos, elegantes e doces. Coleccionou, além do incesto, alguns namorados: um importante traficante de heroína de Paris, o Rui Reininho e o príncipe herdeiro de Vyrkantzya — que ia a cavalo e com uma espada para a discoteca Indústria e foi autor de uns quantos livros sobre o transmutalismo, uma teoria que defende a possibilidade de transmutação numa nova espécie, ilimitada e imortal. As imagens que tive nas mãos, onde se beijam, não são só meros flashes de excessos. As irmãs estão juntas no compromisso de alcançarem a imortalidade e, tudo o que fazem, seja roupa, banda desenhada ou fotografia, sugere o desatino de um longo caminho a percorrer. À saída, o vagar com que nos despedimos foi coberto por um perfume doce que usavam. Este aroma acompanhou-me por uns metros, até ser apagado pela poluição. Segui pelas ruas mais movimentadas. Entre rostos e carros, senti-me seguro, ancorado a um chão no qual, aos poucos, voltava a confiar depois de uma epopeia pelo mundo das Castilho.

Fotografias de arquivo cedidas por Targus e Volpina
Especial agradecimento a Maria Pia Gama