
Foto: Guilherme Santana/VICE
São cinco lanças fincadas no gramado ao seu lado. Ela pega a primeira sem escolher. De lado, estica o braço direito pra trás com o dardo na altura do rosto e se equilibra com o braço esquerdo alinhado à frente. Joga o peso do corpo na perna direita levemente dobrada, respira e avança num movimento rotacional. O dardo, que mede mais de dois metros, sai de suas mãos e rasga o céu até cravar no solo a muitos metros de distância. Mesmo parada, Jucilene Lima parece estar num bailado de movimentos precisos e sincronizados. No seu ornamento perfeito, a seta que pode chegar até a 100 km/ h parece a extensão de seu corpo.
“O lançamento do dardo é como se fosse meu filho”, diz. “Penso nele 24 horas: na técnica, no que eu posso melhorar, no que eu posso fazer pra lançar mais.”
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Aos 25 anos, a paraibana de Taperoá, cidade semiárida que empresta seu nome à literatura em O Auto da Compadecida de Ariano Suassuna, tem nas mãos o recorde brasileiro e a segunda melhor média da América do Sul no lançamento de dardo, os incríveis 62.89 metros, segundo ela mesma, “por enquanto”. Jucilene, a caçula de cinco irmãs, está ás vésperas de alcançar o índice olímpico, mas uma lesão nas costas tem adiado um pouco seus planos. “Eu gosto de pensar uma coisa de cada vez: o meu objetivo agora é melhorar da lesão, depois ganhar confiança pra lançar. Tendo essas duas metas alcançadas, tenho certeza de que vou conseguir a terceira, que é o índice pra Olimpíada”, afirma.
O cronograma do lançamento de dardo, porém, a tranquiliza. Com viagem marcada para San Diego, nos Estados Unidos, pretende intensificar o trabalho e participar de uma série de competições. Para entrar nos jogos olímpicos é preciso lançar, em uma prova oficial, o minimo de distância exigido: 62 metros. “Se eu lançar a essa distância em qualquer competição que tenha um árbitro chefe já é válido.” E completa. “Eu tô bem fisicamente, tô treinando bem, não estou lançando como eu queria por causa da lesão, mas tenho certeza que em breve vou lançar bem.”

As espadas de São Jorge. Foto: Guilherme Santana/VICE
Essa não é a primeira vez que a lançadora tem que lidar com incômodos nas costas. Em 2009 seu desempenho foi muito prejudicado também por uma dor na mesma região. Por três anos ela teve que lidar com o limite de seu corpo e com um fantasma real e assustador do fim da carreira. Jucilene, que não conseguia ultrapassar os 57 metros de distância, teve que rever muita coisa. “Foi um passo muito grande. Foi uma das minha piores e melhores fases. Pior por causa da lesão e melhor porque parei pra analisar e melhorar muita coisa.”
Ela reviu seu comprometimento com os treinos, redobrou o cuidado com a postura (física mesmo), ficou mais exigente e fez uma reviravolta profissional. “Eu tava lesionada, queria treinar, mas não podia, por que agora eu não vou treinar? Foi aí que eu parei e pensei: ‘eu quero ser mais. Não quero ser só uma campeã brasileira, quero lançar mais longe’”. A partir daí, Jucilene foi adiante. Recuperou-se, bateu sua marca pessoal, o recorde brasileiro e o sul-americano (recentemente quebrado pela colombiana Flor Denis Ruiz, que atingiu 63.80 metros) e voltou pro game.
A força para a recuperação tem um nome: São Jorge. Ele está na medalhinha de ouro em seu pescoço e o famoso trecho “Estou vestido com as roupas e as armas de Jorge” está riscado em seu antebraço esquerdo. “É só ter fé em Deus e no meu guerreiro São Jorge que vai dar tudo certo.” Na clavícula ela tem escrito “Abençoada”, uma rosa ocupa o antebraço direito e outras delicadas tatuagens marcam seu corpo.

Treino leve. Foto: Guilherme Santana/VICE
O lançamento de dardo, assim como o lançamento de martelo, o lançamento de disco e o arremesso de peso, é uma das 47 modalidades do atletismo, que está desde a primeira edição dos Jogos Olímpicos, em 1896. As provas femininas, no entanto, começaram a ser disputadas apenas em 1928. Mesmo sendo um esporte milenar, o dardo não é dos mais populares. “Quando se fala em atletismo você vê as pessoas pensando mais em corrida, salto, porque aparece mais.” E é real. Quantos atletas brasileiros do lançamento de dardo você conhece? Pois é.
O atletismo, mesmo nas modalidades mais praticadas como salto e corridas, parece sempre flertar com o acaso. Foi o que aconteceu com o fundista Thiago André, classificado para os Jogos Olímpicos nos 1500 metros. Ele só foi descoberto pela sua velocidade atrás das pipas em Belford Roxo. Foi o que aconteceu também com Jailma Lima, irmã de Jucilene, e prata no revezamento 4×400 metros no Pan-Americano de 2011. “Ela tava correndo na escola, ganhou dos meninos, a professora viu e chamou ela pra treinar”. A casualidade que levou Jailma às pistas, foi, pouco tempo depois, responsável também pela aventura esportiva de Jucilene, que sem ter com quem ficar em casa, acompanhava a mana nos treinamentos na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
“Eu fazia de tudo: corria, saltava, quando se é criança se faz de tudo, né. Até que a professora me colocou pra lançar dardo. Foi até uma marca boa, 18 metros. Na época eu era pré-mirim, eu tinha 10 anos”. O dardo nem foi sua primeira opção. “Nunca me imaginei lançadora. Se fosse para eu escolher eu escolheria o salto em distância. Nunca fui campeã brasileira, mas eu gostava.”

Foto: Guilherme Santana/VICE
Aqui vale fazer um breve adendo imersivo (como essa palavra soa ridícula).
Antes da entrevista com a atleta, decidimos pegar aquela noçãozinha básica sobre como jogar nossos dardinhos por aí. É difícil pra cacete, acredite. Minha melhor tentativa — vale frisar, sem impulso — não passou dos 12 metros. E meu maior trunfo foi ter conseguido acertar um formigueiro. É, não será dessa vez que tentarei ingressar nos Jogos Olímpicos. Ou seja: Este parágrafo é só para dizer uma coisa: Jucilene com 10 anos já lançava quase o dobro da distância que eu. Ela, que não tem os braços musculosos, explica. “Não adianta o homem mais forte do mundo vir aqui, correr e lançar o dardo que ele não vai chegar a 30 metros. O dardo é uma soma de corrida, explosão e força.”
Jucilene Lima, atleta militar com patente de 3º Sargento, carrega seu dardo com a mesma reverência que Ogum, o seu São Jorge guerreiro, empunha sua espada. Ela, mesmo que numa conspiração do acaso, aceitou o seu destino e evoluiu. “O dardo que me escolheu”, ela diz, determinada. “Eu quero ir mais longe.”
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One of the finalists, "Now Which Direction Is My Nest?" (Credit: Alison Tuck) -

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