A primeira sexta-feira de dezembro amanheceu nublada no Rio de Janeiro. Como de costume, depois de uma semana de calor intenso, sempre chove no fim de semana pra estragar os planos da galera. Mas, mesmo nublado, o dia é quente, ainda mais nas periféricas zonas norte e oeste, do lado de lá do cartão-postal, onde, de um jeito ou de outro, a chapa sempre é quente. Chego na Praça Seca por volta das 17h e desço na altura da estação Ipase do BRT, onde encontro meu parceiro e guia nesta pauta, o fotógrafo Tércio Teixeira, do R.U.A. Ele me leva a um trecho Av. Cândido Benício cheio de comércios, que, como no resto do país, bombam de trabalhadores de décimo-terceiro no bolso. Uma quadra em particular tem uns seis salões de beleza, praticamente um do lado do outro. Cinco deles têm uma coisa em comum: atendem apenas homens – e, por mais que a palavra “salão” seja usada pelos funcionários, o termo mais apropriado seria “barbearia”.
Uma barbearia em particular está mais bombada que as outras, com filas de jovens adultos aguardando para dar o tapa no visual antes de se jogar numa das centenas de opções de bailes funk ou pagodinhos no fim de semana. O salão não tem nome, muito menos página de Facebook ou mesmo telefone fixo. Trata-se de uma lojinha de uns 30 metros quadrados aberta pra barulhenta avenida onde Wagnão, Júnior e Wandson “Papi” mostram seus cortes “na régua”. Os moradores da Comunidade do Bateau Mouche (ali do lado, batizada assim por ter sua ocupação iniciada no mesmo ano da tragédia com o barco homônimo) são amigos de infância, têm idade entre 24 e 25 anos e são categóricos: “O patrão é Deus. O patrão de geral!”.
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Conversei primeiramente com Wagnão, barbeiro há oito anos, já famoso no meio por suas participações em campeonatos e ações sociais em favelas. Ele me explica que o corte que mais sai custa de R$ 15 a R$ 20: seu nome é o “disfarçado”. “[Vou] Falar pra tu: raspa aqui na zero, vai ficar uma marca. Aí tem que igualar da zero pro cabelo grande sem deixar marca nenhuma, tipo um dégradé.” Wagnão é um especialista na arte de esculpir na cabeça do pessoal desenhos que podem levar até duas horas: são personagens de desenho animado, rostos, tribais e, é claro, marcas como Nike, Lacoste, Quicksilver e Oakley, dentre outras. “Aprendi olhando os outros cortarem, mas, antes disso, eu já sabia desenhar. Desenhava no caderno; [vou] te falar a verdade: antes de eu saber ler ou escrever, eu já sabia desenhar. Aí comecei fazendo linha, depois comecei a fazer tribal. Os moleques se amarraram… eu olhava o cabelo de alguém e me dava vontade de desenhar: Dragon Ball Z, Pica Pau, essas paradas assim. No início, eu cobrava um real só pra passar a máquina no cabelo do cara.”
O movimento é intenso: em alguns fins de semana, a barbearia funciona até as três da madrugada, único horário em que os três amigos finalmente têm tempo de cortar o cabelo um do outro antes de… na maioria das vezes, voltar para casa. “A gente fica aqui mais tempo do que com a patroa. Mais tempo do que com os nossos filhos”, explica um deles. Brinquei que pelo menos eles não devem ter problemas com ciúmes, uma vez que o lugar só é frequentado por homens. “Ah! De vez em quando, aparece aí uma mina querendo fazer a sobrancelha, mas é difícil… mina boa é difícil.”
Como o efeito do “disfarçado” só dura alguns dias, muitos clientes voltam toda semana para corrigir o corte, fazendo com que o lugar esteja sempre lotado de homens negros de todo canto da cidade. O clima, como em qualquer outro clube do bolinha, é de muita zoeira e pilha errada. Num momento, um barbeiro acusa o outro de ser “o favorito dos clientes viados”. Ele para o corte pra se justificar enquanto todo mundo dá risada. Um detalhe engraçado: os três barbeiros e todos os clientes têm a sobrancelha feita. Como diz meu amigo Mr. Catra, “O Rio de Janeiro é uma cidade de homens vaidosos”. A vaidade é algo tão institucionalizado no universo do funk que uma sobrancelha feita ou o rebolado da dança do passinho, que, em outros contextos, podem ser considerados “comportamentos suspeitos” e levar um sujeito a ser espancado por pitboys bêbados, são totalmente aceitos, mesmo que o conteúdo de algumas letras e das conversas de bar ou barbearia possam levar um leigo a pensar o contrário. Na verdade, o funk é um dos movimentos que eu conheço que mais respeita a diversidade sexual e a participação da mulher, mas isso já é outra pauta…
Quando não estão sacaneando um ao outro, o assunto é mulher ou tragédia. No Rio de Janeiro, sempre tem alguma história triste para ser contada envolvendo os mesmos atores de sempre: polícia, tráfico ou milícia. A maioria da rapaziada que corta lá não mora no bairro, muitos vêm de longe: “Tem gente de Niterói que trabalha na Zona Oeste e passa aqui na volta do trabalho. Passa de ônibus, vê o corte rolando e desce”.
Diogo mora na área e trabalha na Ambev. “Toda sexta-feira, eu venho aqui, porque os moleques são show de bola. Eu venho aqui toda sexta pra ficar bonito. Vou sair daqui e vou pra Barra da Tijuca curtir um sambinha de leve.” Converso com ele enquanto Junior apara seu cavanhaque até só sobrar uma linha bem fininha, o chamado “cavanhaque do canalha” ou “cavanhaque do putão”. Na cadeira ao lado, Wandson trabalha a cabeça de Maromba, que me é apresentado como uma “celebridade do pedaço”. “A gente espera duas ou três horas aqui às vezes, mas sabe que vai valer a pena: sai aquele corte afiado, na régua. Eu trabalho na Barra, moro na Gardênia Azul e venho de lá pra cá pra cortar o cabelo. Confio no cara, pô. Cabelereiro é um só, né, cara? Não pode ficar mudando, porque não sabe quem é quem.” O depoimento dele é interrompido por protestos: “Cabelereiro não, porra!”.
O clima é muito engraçado, lembrando aquele clássico da sessão da tarde O Príncipe de Nova Iorque e vários outros filmes blacks. A semelhança não é à toa: os salões gringos são fonte de inspiração dos barbeiros do Bateau Mouche, que estão sempre se atualizando, assistindo no YouTube a vídeos dos barber shops do Brooklyn. Mesmo sem acesso a todos os produtos e equipamentos que eles veem nos vídeos, a essência do corte é navalha e tesoura, e o resto se improvisa. O clima no local só ficou meio ruim em um momento: quando a TV ininterruptamente ligada numa emissora aberta transmitiu a notícia sobre os protestos contra a absolvição do policial branco que, nos Eua, estrangulou o negro Eric Garner. “Um policial matando um preto: que novidade”, ironizou alguém.
Em algum momento, Wagnão disse que o “barbeiro é uma parada que nunca vai acabar, porque o cabelo sempre cresce, né? Olha o teu (risos)”.Inspirado nisso, resolvi encerrar a matéria dando uma aparada no bigodón.