Entrevistar uma pessoa de surpresa é uma boa maneira de conheça-la. Já fazer isso duas vezes seguidas é perfeito pra encher o saco dela. Quando tive a ideia de fazer uma matéria sobre o sapateiro chileno Nelson Ujeda, imaginei que seria moleza. Na primeira vez em que conversei com ele, por pura curiosidade, o cara se abriu que nem uma flor, falou numa boa sobre sua vida e a profissão sui generis: fazer sapatos de salto alto para uma clientela bem específica, mais exatamente as moradoras e trabalhadoras do Baixo Augusta. No entanto, quando entrei pela segunda vez em sua SAPATARIA, no meio da tarde numa quinta-feira ensolarada, me deparei com um Nelson nebuloso. Eu deveria ter imaginado que um cara que escolhe um nome tão literal pro seu negócio seria um cara pavio curto.
O chileno, com dez anos de Brasil e o mesmo tempo de empreendimento na região, parecia um tanto descontente com os frequentadores dali. As redondezas passam por uma fase hype: em meio aos puteiros e botecos sujos tradicionais, nos últimos anos foram abertas diversas casas noturnas descoladas, que atraem um público plural, feito de sujeitos bem sucedidos, jovens alternativos, turistas e emos. Nelson só queria discursar sobre a discriminação contra os imigrantes por esse povo. Dei corda, e logo veio: ele tava fulo da vida era com o proprietário do imóvel que, esperto nas mudanças no movimento local (e portanto faminto por mais dígitos em sua conta bancária), quer tirar a SAPATARIA dali e passar o ponto para inquilinos mais interessantes financeiramente.
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De nada adiantava minha empolgação. Argumentei que a entrevista daria repercussão para o seu negócio (na Vice? Até parece!). Sua desconfiança diante dos brasileiros pouco louváveis foi totalmente transferida para mim e o cabrón fez cu doce dizendo que havia negado dar entrevistas para outros jornalistas e isso incluía uma repórter da Rede Globo! Mas, como eu já conhecia a sua vaidade e não largaria a minha assim tão fácil, sabia que poderia derrubar a sua teimosia. Alguns elogios aos sapatos – como que os modelos eram super trendy, entre outros termos fashion pouco substanciais, porém úteis para me caracterizar como entendida de moda – foram suficientes para que o lado simpático daquele sujeito viesse à tona, ainda que a condição “gravador desligado” tenha sido mantida.
MALDIÇÃO
Os modelos de Nelson Ujeda são chamativos e bem acabados, possuem saltos altérrimos e translúcidos, feitos de resina injetada. Digníssimos das moças da região, hoje em dia, assim como o Baixo Augusta, esses modelos estão na moda, quer dizer: são vistos nos pés das biatches mais fashion, das celebridades e nas passarelas mais cotadas do mundo. Os modelitos da SAPATARIA são todos feitos por ele, que aprendeu o ofício observando outros sapatos e copiando. Apesar de seu pai ter sido dono de uma fábrica de sapatos no Chile, ele não queria seguir a profissão. Disse – voltando para o mau-humor inicial – que ser sapateiro era como uma maldição, uma sina que ele tentou fugir optando pelo curso de mecânica, após seu pai abandonar a família.
Todavia, a necessidade e a vivência na fábrica do pai o levaram a ser sapateiro, e dos bons. Seus sapatos são lindos e muito bem feitos, como eu enfatizei mais uma vez para animá-lo. “Você já viu esse?” Nelson me mostrou um modelo, “cópia de um que aquela japonezinha, a Sabrina Sato, estava usando em uma revista”. “Você sabe que nada se cria” ressaltou, pra então revelar que trabalha modificando as cópias em cima do mesmo padrão de salto, que se repete em diferentes desenhos em couro opaco ou verniz. Aliás, quando uma prostituta local entrou para pedir um salto diferente (um modelo Anabela), ele sequer pensou, já disse “só tenho esses saltos que estão aí”, e a prima saiu sem dizer nada.
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CAMILLE COHEN/Contributor/Getty Images -

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