Música

Faz 15 Anos que o D-Edge É o Mais Importante Clube do Brasil

Em qualquer lugar do mundo, uma festa com o DJ americano Seth Troxler é ocasião especial. Mas numa madrugada chuvosa e estranha marcada pelos ataques terroristas em Paris, Seth e sua entourage comandavam a pista 1 do D-Edge como se aquela fosse uma noite qualquer. E era. Criado há 15 anos em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, e estabelecido há 13 no cruzamento da Av. Auro Soares de Moura Andrade com a Al. Olga, na Barra Funda, em São Paulo, o D-Edge se tornou um clube referência mundial com a receita que fez de cenas como essa se tornarem comuns: design inovador, profissionalismo, som e iluminação impecáveis, e uma programação de alta qualidade.

Do seu começo, época em que o clube ajudou a difundir o house com pegada underground para o público da noite paulistana, até hoje, quando serve de carimbo de selo qualidade e plataforma para diversos DJs se lançarem, a história do D-Edge é entrelaçada com a do seu criador, o magnight Renato Ratier. No início dos anos 2000, a produtora Patricia Corrêa trabalhava na agencia de DJs Hypno, e atendia, entre outros, Ratier. “As pessoas falavam do dono do D-Edge, e eu não o conhecia, só sabia que ele trazia o Mr. C, dono do clube londrino The End, um cara super caro, para tocar em Campo Grande e eu não entendia [por quê]”, conta Patricia. “Pensava: esse cara é um puta mecenas.”

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Renato nasceu em São Paulo e aos quatro anos de idade se mudou para Mato Grosso do Sul, onde sua família tem negócios no ramo agropecuário. Na capital Campo Grande, começou a discotecar em meados dos anos 90, e daí partiu para produção de zines, confecção de roupas e programas de rádio que fomentaram uma cultura local de house e techno. Para atender esse público, ele abriu em 2000 o D-Edge, uma casa para 700 pessoas que funcionava duas vezes por semana. Mesmo localizada fora do eixo principal da noite brasileira, Ratier investiu pesado na criação de um clube de primeiro mundo — e no processo encontrou o principal parceiro da sua carreira, o arquiteto, designer e artista visual Muti Randolph.

Novidade no Brasil

“Eu estava começando e tinha acabado de fazer o projeto do interior da [boate] U-Turn, que o Renato viu e ficou interessado”, diz Muti. “Então ele me convidou e foi uma oportunidade de fazer uma coisa nova no Brasil e criar um clube do zero.” O embrião do conceito da casa estava ali: o clube deveria lembrar o interior de uma máquina, mas no final dos anos 90 isso significava resgatar o retrofuturismo dos anos 60 e trabalhar com formas arredondadas e coloridas. “O D-Edge de Campo Grande ganhou diversos prêmios de arquitetura, então quando mostrei minha ideia para São Paulo as pessoas ficaram chocadas”, conta o designer.

Divulgação

Na capital paulista, o clube nasceu com o clima da cidade, num misto de ângulos retos e poucos detalhes. “Era uma caixa preta minimalista, com linhas que determinavam arquitetura no ritmo da música. Ainda era o interior de uma máquina, mas uma máquina brutalista”, explica ele. Muti acertou no desenho, mas por pouco não errou no nome. “Eu achava que em São Paulo tinha que ser uma marca diferente, cheguei a sugerir clube Electro. O Renato até hoje me sacaneia por isso”.

Muti diz não lembrar, mas Renato também brinca com a reticência inicial do parceiro com a Barra Funda. “Eu tinha vindo para São Paulo tocar no Piranha e depois fui numa festa no Stereo. Então o Oscar Bueno, promoter do clube, me contou que o Tony, dono do Stereo, queria vender a casa. Virei para o Muti, que estava na cidade para o Fashion Week, e falei que tinham acabado de me oferecer o espaço. Ele virou e falou ‘na Barra Funda, tá maluco?’. Eu respondi ‘maluco tá você, não estamos os dois aqui?’”.

Do Stereo, ficaram a base da estrutura, o sistema de som e o banheiro unissex. “Vi muito playboy se descobrir gay no D-Edge, e esse banheiro ajudou, as pessoas se sentiam livres”, conta Patricia, que se tornou promoter do clube nos dois primeiros anos da casa e, depois de anos trabalhando na Europa, hoje voltou para o clube e é uma espécie de braço direito do Ratier. Mas, como Muti previa, antes foi preciso fazer eles irem até lá.

Portas abertas

“O clube ganhou um lugar em especial na minha memória no momento em que pisei nele”, conta Luke Solomon, DJ inglês e atração principal da primeira noite em que o D-Edge abriu para o público em São Paulo, no dia 28 de abril de 2003, uma sexta-feira. “O desenho do clube, a atmosfera e as luzes que emulavam os sintetizadores na parede, isso me conquistou”, diz Luke, amigo de Patricia da cena londrina dos anos 90. Bem relacionada, ela traçou uma estratégia de lançamento para garantir o máximo de atenção e o maior público possível na primeira semana.

Foram duas festas fechadas antes da abertura na sexta. Uma, com o mailling de Fernanda Barbosa, voltada para o público playboy. A segunda, com os contatos de Cacá Ribeiro, trouxe um povo mais descolado e ligado ao mundo da moda. Além disso, naquele final de semana acontecia o 4º Skol Beats na cidade e advinha quem era da produção? “Eu trouxe todos os gringos para o D-Edge”, lembra Patricia.

“Ninguém discotecava new wave, pós-punk, essas coisas, aí o bicho pegou terrivelmente nas segundas-feiras numa noite cheia de gente desocupada” — João Gordo

Ao lado de Luke Solomon, tocaram nesse primeiro dia o próprio Renato Ratier, Luiz Pareto e Marcos Morcef – trio que deu cara a Freak Chic, noite voltada para o house que até hoje ocupa às sextas da D-Edge — foi numa Freack Chic que Seth Troxler se apresentou também. A longevidade, aliás, é uma característica das festas do clube. No sábado seguinte, a Mothership do promoter China decolou e, não demorou, a segunda-feira virou o dia menos eletrônico com a On The Rocks, da Vivi Flaksbaum.

Ratier em ação. Foto acervo pessoal/Cuca Pimentel

Durante os primeiros anos da festa, o residente e nome forte da festa foi João Gordo, vocalista do Ratos de Porão e figura por excelência. “Ninguém discotecava new wave, pós-punk, essas coisas, aí o bicho pegou terrivelmente nas segundas-feiras numa noite cheia de gente desocupada”, diz João, que conta que o lance começou a desandar quando, depois de mais de uma década de sobriedade, saiu fora do rolê. Hoje, ele voltou a tocar em datas espaçadas na On The Rocks. “Só não consigo mais tocar com vinil, o corpo não aguenta mais. Mas o D-Edge é um puta clube foda.”

Casamento & separação

Também foi na On The Rocks que Yaya Pagh pisou no D-Edge pela primeira vez. Na sua festa de casamento, para ser específico. “Gostei tanto que minha festa de separação também foi lá”, diz ela, que depois se tornou hostess e musa do local até 2008, quando se mudou para Dinamarca. Mesmo distante, ela lembra com carinho do clube: “Foi minha casa, minha família e meu sonho. O Renato tem o dom de formar uma equipe incrível e fazer que com essa equipe divida os seus sonhos, como se fossem deles”.

Cuca e Ratier. Foto acervo pessoal/Cuca Pimentel

Não é difícil entender a fala de Yaya. Na realidade, grande parte dos que trabalham no clube mantém ao mesmo tempo uma posição de público e fã da casa. A fotógrafa Cuca Pimentel, por exemplo, que também já dobrou como promoter do SuperAfter, deve ser uma das poucas pessoas do mundo a ter gostado de todos os seus dias na firma. “Nunca me arrependi de uma noite no D-Edge. Nunca. Sempre me diverti e saí muito feliz de lá, como da primeira vez, quando fiquei hipnotizada com as luzes dos equalizadores subindo e descendo na parede”, conta Cuca.

Geração D-Edge

O sentimento se estende para outros empreendimentos de Ratier, que tem participação no Warung, em Itajaí, o clube-centro-tecnológico-shopping-estúdio-hotel Holzmarkt em Berlim, está no meio da construção de um centro cultural no Rio de Janeiro, administra uma marca de roupas com seu nome e recentemente abriu o Bossa, restaurante de culinária brasileiras com toques modernos nos Jardins.

É no Bossa que a maioria dos DJs que vão ao D-Edge comem antes de ir para o clube e é para o clube que a maioria da equipe da equipe do Bossa vai depois do trabalho.

Art Department no D-Edge. Foto acervo pessoal/Cuca Pimentel

Dias antes da apresentação de Seth, também era no Bossa que Ingrid Diniz, a DJ Ingrid, comemorava seu aniversário depois de um dia de aulas no D-Edge. Além de residente da Moving, Ingrid é professora ao lado de Laurent F na DJ College, um curso do clube que ensina os primeiros passos na arte de animar uma pista. “Eu dou aula para alunos variados, tem uma coroa de 55 anos que se interessou e começou a tocar, gente que só quer desestressar no final do expediente, já tive um aluno que teve um derrame e se sentia excluído, então buscava uma nova maneira de socializar, além daqueles que investem na carreira mesmo”, afirma a DJ.

Lennox nos decks no D-Edge. Foto por Edu Corelli

Em intervalos de dois a três meses, o D-Edge promove festas para os estudantes botarem o curso em prática nas pistas do clube. Mas essa não é a única forma de entrar para o time, pelo contrário. Para o DJ carioca Lennox — hoje residente da Freak Chic — a chance caiu do colo quando algum gringo furou de última hora, em 2005. “Nem pensei, me joguei num busão e fui. Entrei no som às quatro da manhã e saí às dez direto para rodoviária. Só acordei no Rio”, lembra.

Já o produtor paulista L_cio conseguiu chamar atenção da forma mais tradicional: o pen-drive demo nas mãos certas. “Eu já frequentava o clube há mais de dois anos e sabia que o Johnson, iluminador da pista 1, era um dos que mais ouvia música por lá. Então entreguei para ele que curtiu e me chamou para testar minhas faixas antes do clube abrir, lá pelas dez e meia da noite.”

L_cio na pista 1 do D-Edge. Foto do Facebook

“Eu fiz isso várias vezes antes de tocar pela primeira vez numa quarta, na CIO (hoje na Lions), da Gláucia ++”, conta L_cio. Um dos DJs de São Paulo que transita mais livremente pelas pistas mais e menos mainstream da cidade, L_cio acha que o clube mantém a mesma capacidade de apresentar música nova e inovadora do seu começo.

“Sempre vi o clube como referência e antes se você queria escutar algo novo era realmente lá o lugar. Para você ter uma ideia, eu e o Zopelar já fizemos um live de três horas com (o pianista experimental) Francesco Tristano no D-Edge.”

Melhores memórias

De 2003 a 2005, o D-Edge coexistiu em São Paulo e Campo Grande com uma programação parecida. Apesar de o clube abrir menos na capital sul-mato-grossense, a maioria das atrações tocava em ambas as cidades. Isso valia tanto para os residentes quanto para os convidados internacionais. E, dessa época até hoje, foram muitos. “A gente parou de contar os produtores gringos que se apresentaram no quando passou de 1.500”, conta Ratier. A Ellen Alien, por exemplo, segundo Patricia, acha o P.A. da casa o melhor do mundo.

“Educar musicalmente um novo público é muito importante” — Fábio Spavieri

Steve Aoki pendurado no teto, Anja Schneider provocando os meninos para fazer strip-tease na pista, Miss Kittin aparecendo de surpresa, Erlend Øye dando mosh na galera, Ricardo Villalobos sendo aplaudido pelo clube inteiro, Diskokaine pintando minhas unhas na porta, são muitas noites memoráveis”, diz Yaya. Na realidade, para cada um que é feita essa pergunta, surge uma lista semelhante de dias inesquecíveis. Para os DJs, muitas vezes isso aconteceu quando pegaram alguma pista endiabrada depois de alguém de fora, como Ingrid, que teve que assumir as picapes às onze da manhã depois de uma apresentação do Dubfire que deveria ter acabado às sete.

Leia: “‘Prática, Paciência, Técnica e Classe’ É a Receita do Dubfire pra Ser um Bom DJ”

Outras vezes, a lembrança foi de ter que jogar no sacrifício. “Eu tive um problema seríssimo de hérnia de disco, que operei faz dois anos. Eu ia tocar com dores horríveis, abaixava a calça e pedia para ficarem jogando spray de anti-inflamatório sem parar nas minhas coxas”, diz Ratier. “O prazer que sentia em tocar superava a dor.”

Pista 1 do D-Edge. Divulgação

Márcio Vermelho, residente da Freak Chic há cerca de seis anos e veterano do D-Edge desde os tempos de Campo Grande, tem uma história parecida. Em 2009, depois de uma retirada de siso malsucedida, ele ficou com o pescoço muito inchado e a cabeça praticamente imobilizado. “Era praticamente impossível tocar, mas fui lá e fiz meu trabalho. Hoje parece meio irresponsabilidade, deveria ter respeitado meus limites”, conta.

A expansão

Um ano depois do infortúnio de Márcio, em 2010, o D-Edge foi reformado e ampliado. A capacidade do clube dobrou de 500 para mil pessoas, e foram criadas a pista 2 e o lounge, além de uma reformulação tecnológica em relação ao som e luz. “Os novos espaços mantiveram a coerência estética e conceitual, mas já trazem elementos novos, como acabamento em madeira e linhas mais orgânicas. Hoje, o lounge é meu lugar preferido”, fala Muti.

Divulgação

As mudanças na estrutura foram acompanhadas por um público novo. Além das carinhas conhecidas, em qualquer noite na porta do D-Edge — ou nos botecos em volta do clube — uma geração de novinhos e novinhas se concentra à espera de mais uma noite dentro da máquina. Fábio Spavieri, promoter e residente do SuperAfter, estima que só entre 10% e 20% dos frequentadores hoje atuais sejam habitués antigos.

“Antes da popularização da internet, o público se renovava de cinco em cinco anos, mas hoje com a rapidez do mundo de dois em dois anos todo mundo muda”, explica Spavieri. “Ainda assim, por um lado isso é ótimo, educar musicalmente um novo público é muito importante”. E, segundo uma análise de frequência com base no banco de dados do clube, acontece um tipo de migração dentro das noites do D-Edge. “É nítido que o público antigo ds segunda passou para a quinta, por exemplo”, conta Ratier.

Sentado em uma mesa nos fundos do Bossa, de onde consegue observar todo o movimento do restaurante, o dono do D-Edge exibi um pouco das características que o fazem segurar o clube nos eixos. Ele nunca foca 100% na conversa, mas fica sempre atento para ver se algum detalhe está fora do lugar. Abra um evento do clube no Facebook, e na descrição com certeza aparecerá a frase “Direção: Renato Ratier”. Se por um lado parece egocêntrico, por outro é verdade no sentido que ele cuida com afinco de cada uma das noites do lugar. Não só isso: mesmo perdido entre os compromissos variados de negócios, ele vive na Barra Funda, inclusive quando não vai tocar.

“O D-Edge é minha vida e eu sou muito grato ao D-Edge”, conta. “Quando eu estou num voo internacional e a TV do avião recomenda o clube eu acho muito gratificante um produto nacional que se tornou referência no mundo”.

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