“Já estive em lugares onde me penduraram pelas pernas, me cobriram de merda e me fizeram comer caldo de oso [uma sopa feita com vegetais pobres]. Eles acham que bater nas pessoas e gritar que elas vão morrer vai fazer alguém parar de usar drogas”, disse Enrique Martinez, 55 anos, que foi viciado em heroína por 35 na cidade de Tijuana, México.
Antes de largar a heroína, num centro de reabilitação conhecido chamado Nova Visão, que agora ele ajuda a gerenciar, Enrique foi internado em um dos milhares de centros de tratamento para drogas clandestinos da cidade, conhecidos como anexos.
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México, atualmente sob a pior violência de cartéis desde o começo de sua “guerra às drogas” mais de uma década atrás, agora está lutando com um problema crescente de vício. Ainda assim, seu sistema de tratamento para viciados continua precário.
Com recursos limitados e inadequados do estado, o governo do presidente Andres Manuel Lopez Obrador, que assumiu em dezembro, está deixando muitos usuários de drogas na mão de um sistema mal equipado e infernal de tratamento, que acaba com muitas pessoas vulneráveis sendo sequestradas, abusadas e espancadas. Só uma em cada dez clínicas de reabilitação operando no México tem permissão da agência anti-vício do país, segundo especialistas. Outras fontes estimam que um quarto das clínicas de reabilitação são registradas.
O uso de drogas em geral no México quase dobrou nos últimos anos, segundo o censo de consumo de drogas do governo. Mais preocupante, o uso de metanfetamina em cristal, conhecida como “cristal” no México, também dobrou. Na última década, as grandes quantidades de meta fabricadas no país pelos cartéis estão começando a se espalhar para a comunidade, sendo amplamente vendidas pelos traficantes de rua.
“[Cristal] é uma ameaça porque é muito acessível e altamente viciante”, disse Gady Zabicky, chefe da agência anti-vício federal do México, o CONADIC. Mas Zabicky admite que simplesmente não há clínicas públicas suficientes para o exército crescente de viciados do México. No estado de Guanajuato, onde o uso de meta teve um pico junto com os homicídios, a demanda para tratamento para vício em cristal aumentou em sete vezes nos últimos anos, segundo dados do governo.
Jose Gomez, um psiquiatra que trata usuários de drogas num centro do governo em Guanajuato, disse que eles trataram cerca de 2 mil pessoas por ano, principalmente para cristal, mas que a demanda ultrapassa o que eles podem oferecer. “Precisamos abrir mais espaço [para tratamento de usuários de drogas]”, ele disse a VICE.
Então o governo terceiriza o problema do vício para uma grande rede de centros privados de tratamento. Alguns deles bons, mas muitos não são confiáveis, usam métodos questionáveis ou perigosos. A supervisão e monitoramento do governo dessas clínicas é mínimo. Como exemplo, metade da centena de usuários de drogas na clínica Nova Identidade, que a VICE visitou no México, foram internados ali pela agência de serviços sociais mexicana, a DIF. Um deles era um menino de apenas 11 anos.
As clínicas boas e registradas podem cobrar até US$ 1.500 por um programa mínimo de três meses. Mas essas são para poucos. Com a falta de opções públicas de reabilitação, famílias desesperadas para ajudar seus entes queridos viciados se voltam para essas clínicas particulares, quando apenas uma em cinco delas é registrada com as autoridades, segundo os especialistas com quem falamos. Há cerca de 2.200 clínicas clandestinas operando pelo país, segundo Zabicky, mas provavelmente há mais: Ruben Diazconti, que trabalha com usuários de drogas na Cidade do México, disse a VICE que ele acredita que só na cidade há 1.800 delas.
Nos últimos anos, alguns centros fizeram esforços para se registrar com o governo e seguir as normas oficiais, outros – os anexos – foram empurrados para o submundo por causa dessas pressões. Quase metade desses centros particulares são gerenciados e empregam ex-usuários de drogas.
Pacientes internados em centros de reabilitação – registrados ou não – muitas vezes são sequestrados pelos funcionários e internados contra sua vontade. As famílias, bem-intencionadas e no fim de suas esperanças, tiram a liberdade deles. “É muito comum que as pessoas sejam enganadas, pensando que vão para outro lugar, mas acabam sendo levadas para esses centros contra a vontade”, disse Carlos Zamudio, um investigador independente do mercado e consumo de drogas, que escreveu um relatório sobre os centros de reabilitação para a Open Society Foundation em 2016.
Entrevistas com usuários de drogas em Guanajuato, Tijuana e Cidade do México confirmaram que essa prática é comum tanto em clínicas registradas quanto clandestinas. Mesmo a polícia municipal às vezes entra em contato com as famílias ou clínicas para levar pacientes para esses centros contra sua vontade, disseram usuários e observadores.
“Eu estava dormindo e eles me acordaram no meio da noite”, disse Ceci, 20 anos, que falou com a VICE no centro Nova Identidade na Cidade do México. “Eu estava superdrogada e foi horrível. Eu não queria vir e [as pessoas do centro] amarraram minhas mãos e pés, comecei a berrar. Eles me carregaram para a ambulância porque meus pais assinaram um formulário – eu tinha menos de 16 anos na época.”
Ceci começou a usar drogas quando tinha 13 anos e entrou e saiu de clínicas pela maior parte da juventude. Ela foi internada aqui por seu uso de metanfetamina. Essa é sua quarta passagem por esse centro. Dessa vez ela veio por conta própria, mas das outras três ela disse que foi obrigada.
A prática de violência física e emocional nos anexos para curar vício é comum, segundo Zamudio. “Eles dizem que esses métodos são o único jeito dos viciados aprenderem a dar valor a vida”, ele disse. Seu relatório estimava que na época, cerca de 35 mil usuários de drogas no México estavam em centros operando sem registro.
Outra vítima anônima, entrevistada por Zamudio para seu estudo, disse: “Meu pai me trouxe aqui com mentiras. Ele me pediu para ir com ele até a casa do meu tio buscar algumas coisas. Quando chegamos lá, alguns homens apareceram. Quando eles tentaram me colocar numa van, fiquei puto, então eles amarraram meus pés e minhas mãos atrás das costas”.
“Eles me amarram como se eu fosse um porco indo pro abate”, disse outro. “Eles me pegaram por trás, amarraram minhas mãos e pés quando cheguei, me colocaram num lugar que eles chamavam de necrotério… Me mandaram deitar numa das mesas de metal. Me disseram que aquela seria minha cama, que eu ficaria ali até ficar sóbrio. Bom, desde que entrei naquela sala de observação, ou necrotério, como eles chamavam, dava pra ouvir pessoas gritando. As pessoas gritavam por toda a madrugada, xingando.”
Legais ou não, centros de reabilitação não estão fazendo o trabalho que deveriam – mesmo aqueles com boas intenções. “As pessoas acabam se sentindo amargas, magoadas, e começam a usar drogas de novo”, disse Martinez em Tijuana.
Essas clínicas se tornaram um bom negócio para proprietários que conseguem lidar com centenas de pacientes ao mesmo tempo, mas não estão resolvendo o problema do vício. Alfredo Segura, do centro registrado Nova Identidade na Cidade do México, disse que tem uma taxa de sucesso de apenas 7% com os pacientes. É algo muito baixo comparado com taxas de sucesso (raramente comprovadas) dadas pela maioria dessas clínicas, mas Segura está sendo honesto sobre as dificuldades de largar o vício.
Zabicky disse que outro problema com as clínicas de reabilitação mexicanas é que o tratamento que elas dão é o mesmo para todo mundo, independente se as pessoas estão procurando ajuda para álcool, heroína ou cristal.
Mas não é só a metanfetamina que está crescendo entre a população cada vez mais viciada do México. No norte do país, na fronteira com os EUA, overdoses de opiáceos – raramente registradas nas autópsias no México – estão em ascensão.
Até pouco tempo, o México estava sendo poupado da epidemia de opiáceos que varre os EUA atualmente. Mas agora, observadores que trabalham com usuários de drogas em cidades como Tijuana e Mexicali estão detectando fentanil em testes em pó branco, vendido como heroína e chamado de China White.
Cartéis mexicanos começaram a produzir fentanil em cozinhas clandestinas em estados como Michoacán, Guerrero, Sinaloa e Baja California alguns anos atrás, em resposta à demanda crescente de opiáceos sintéticos de usuários e traficantes nos EUA. E como a metanfetamina, fentanil também está se infiltrando na dieta de drogas do México, um subproduto do aumento do uso de heroína e da produção doméstica do opiáceo sintético altamente letal.
“Foi com a chegada da ‘China White’ que começamos a ver tantas overdoses”, disse Luis Segovia. Ele e seus colegas da Prevencasa, uma ONG de redução de danos que tem um sistema de troca de agulhas no norte de Tijuana, começaram a entregar spray de naloxona para os usuários, um medicamento que reverte overdoses de opiáceos se aplicado numa pessoa que está morrendo a tempo.
Seu colega Alfonso Chávez roda diariamente os quarteirões próximos do centro. Num beco próximo, usuários se reúnem numa calçada, alguns perdendo e reganhando a consciência. Chávez dá a cada um deles um spray de naloxona, no caso de alguém ter uma overdose. Chávez critica Yolanda, uma usuária de meia idade, por pegar uma agulha suja do chão e se preparar para usá-la. Ele diz que a naloxona – conhecido pela marca Narcan nos EUA – é muito cara no México. A Prevencasa depende de doadores internacionais, não do governo mexicano, para fornecer seu suprimento do remédio.
A duas horas de carro dali, na cidade de fronteira de Mexicali, o usuário de heroína Julio Moreno, 31 anos, disse a VICE que experimentou fentanil pela primeira vez em setembro. “Fiquei que nem um idiota”, ele disse, mas ele acabou gostando da droga por ser forte, então continua a usá-la. Verter, um centro comunitário que trabalha com usuários de drogas, testou a seringa que ele estava usando e o resultado deu positivo para fentanil.
O governo precisa se focar, segundo Tania Ramirez, da ONG influente México Unido Contra o Crime, “em mais e melhores medidas para aperfeiçoar os esforços de prevenção – para lidar com os fatores de risco que afetam a população mais vulnerável, como crianças e adolescentes”.
Mas o futuro não parece promissor para ninguém com um problema de drogas no México. O presidente Andres Manuel Lopez Obrador cortou a verba para organizações sem fins lucrativos como a Verter e a Prevencasa, que estavam trabalhando nas linhas de frente com usuários vulneráveis, quando assumiu no final do ano passado. Os cortes eram parte de uma ofensiva contra a corrupção, argumentando que muitas organizações do tipo abusam dos fundos do governo. Especialistas reconhecem que isso pode acontecer, mas que a solução é acrescentar um filtro para como o dinheiro é distribuído, para evitar que ele caia em mãos corruptas.
Enquanto isso, os cortes de orçamento federal deixaram as organizações lidando diretamente com os usuários desesperadas atrás de fundos para abordar o problema crescente.
CRÔNICAS DE CARTEL é uma série de matérias sobre as linhas de frente da guerra às drogas na América Latina.
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Tradução do inglês por Marina Schnoor.