O clima de verão fora de época da semana passada foi quebrado por um fim de semana chuvoso e sombrio. Na noite de sexta dia 20, Ágatha Vitória Sales Felix, 8, deixou o plano terreno para entrar nas estatísticas. Ela é a quinta criança morta por bala perdida este ano, e a décima-sexta baleada segundo o levantamento da plataforma Fogo Cruzado. Dados do ISP (Instituto de Segurança Pública) apontam 1249 mortes por intervenção de agentes do estado de janeiro a agosto. De família religiosa, Ágatha estava a bordo de uma Kombi quando foi alvejada por tiros disparados por policiais militares. Segundo relatos de moradores, os PMs teriam atirado contra motocliclistas que julgaram estar armados e erraram o tiro, acertando a menina de oito anos e indo embora sem prestar socorro. O fim de semana foi marcado por protestos, também por descaso do poder público e também provocações de uma parte da PM.

Sob chuva, na manhã de sábado um ato espontâneo foi realizado na Fazendinha, região do Complexo do Alemão onde a menina foi morta. Moradores e mototaxistas marcharam até o local do crime, que estava guardado por policiais armados e o infame veículo blindado conhecido como “Caveirão”, que permaneceu lá até pelo menos domingo. Outro ato foi convocado ao meio-dia de domingo, saindo da UPA na avenida Itararé rumo ao velório próximo do cemitério de Inhaúma. Chovia muito, crianças lideravam o ato carregando balões amarelos iguais ao carregado por Ágatha numa foto. Mototaxistas somavam-se ao ato fazendo a contenção do trânsito e buzinando sem parar. “Bala perdida nada, só tem bala mandada”, gritava uma coroa eufórica. Algumas centenas de pessoas seguiam um carro de som que puxava puxava o coro de “Justiça! Justiça”, “Witzel assassino” e revezava vozes entoando louvores ou funks como o “Rap da Felicidade”. Mais tarde a multidão dobraria de tamanho.
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Mais de uma vez desde sua posse o governador Wilson Witzel pronunciou-se orientando a PM a alvejar homens armados. Mas nem sempre é preciso estar armado: além de crianças ou pessoas cuidando dos seus afazeres, furadeiras e guarda-chuvas já foram confundidos com armas e terminaram em mortes. Um vídeo que viralizou nas redes recentemente mostra a PM abordando motociclistas carregando um pedestal de microfone: “Vocês saindo da favela assim, depois morre e a culpa é de quem? Do polícia,” diz o PM.
Não foi esta gestão que inventou essa guerra. Segundo levantamento da ONG Rio de Paz, Ágatha é a 57ª criança morta por bala perdida desde 2007, no entanto é inegável o banho de sangue autorizado pelo governo Witzel. A polícia do Rio de Janeiro mata em média 5 pessoas por dia, nos cinco primeiros meses do ano foram 731 mortes, um crescimento de 12% do ano anterior e número recorde desde 2008, em que houveram 652 mortes no mesmo período. Ainda que de forma desproporcional, as fatalidades não são exclusividade dos civis: só neste final de semana dois policiais militares foram mortos. Segundo amigos presentes no enterro, é o terceiro caso de bala perdida na família de Ágatha.

O ator Fabio Assunção, a jornalista Flávia Oliveira e o artista plástico Ernesto Neto foram algumas das celebridades que identifiquei no protesto, além de comunicadores e ativistas locais como René Silva do A Voz das Comunidades e Renata Trajano do Coletivo Papo Reto. Quando a marcha estava na altura da estação de metrô de Inhaúma, antes de chegar no velório, uma viatura policial identificada com o número 54-0284 quis furar a multidão, ligando a sirene e forçando passagem. Não houve motivo ou justificativa alguma. O presentes não deixaram a viatura passar: um amigo da família bem exaltado se postou em frente ao veículo e xingou os policiais.



O ator foi um dos primeiros a chapar com o celular na cara dos canas. Se não fosse ele e o tanto de imprensa que havia o desfecho poderia ter sido diferente. Os policiais se controlaram, manifestantes acabaram afastando o sujeito exaltado, e liberando a passagem para viatura.
Procurados pela VICE a assessoria de imprensa da PMERJ respondeu: “pela imagem enviada, não vemos registro de alteração. Vemos uma viatura acompanhando a manifestação. O 3º BPM (Méier) acompanhou a movimentação até o final sem registrar qualquer problema”. Enviamos mais fotos retrucando que a viatura em questão não acompanhava o ato, estava no trânsito e forçou seu caminho através da multidão. Ainda não recebemos resposta.
Não foi o único incidente envolvendo a polícia no dia: mais tarde um PM youtuber do MBL tentou colar no enterro, foi rechaçado por um militante antifascista da Marcha das Favelas, o agrediu, fugiu, e postou o vídeo se vitimizando pra todo mundo ver.


O ato chegou a funerária onde o corpo de Agatha era velado, às 16h saiu um cortejo até o cemitério de Inhaúma. A família liderava uma multidão de centenas de pessoas e dúzias de mototaxistas. A mãe carregava uma boneca da Mônica, o brinquedo favorito de Ágatha, a avó, ia dentro do carro, em estado de choque, o tio Cristian era um dos que mais chorava. Mais tarde, durante o sepultamento, a boneca da Mônica foi erguida pelo avô Airton, que repetiu várias vezes, “a arma que a minha filha carregava era essa daqui”. Foi uma cena horrorosa que ninguém deveria sequer testemunhar, mas que faz parte da vida de dezenas de famílias cariocas — seis só neste ano.

Não tinha um colega da imprensa que não estivesse deprimido ou revoltado, um cinegrafista morador do Complexo desabafou: “Gritam Marielle presente! Agatha presente! Deveriam gritar é ‘ausente’”.

Na manhã de segunda, quatro policiais prestaram depoimento hoje na Delegacia de Homicídios da capital, que deve realizar uma reconstituição. Dois dias de silêncio depois, o governador convocou uma coletiva para a imprensa nesta segunda-feira. Sem comentar a ação da polícia, Witzel lamentou a morte. Ignorando os recordes de mortes por intervenção policial, o governador do Rio de Janeiro disse que os homicídios no estado reduziram em sua gestão. Ignorado por Witzel também foi o recorte racial das mortes por decorrência de ação policial, que aumentou entre negros diminuiu entre brancos, segundo apuração do Buzzfeed Brasil. Ele então acusou a oposição de usar caixão como palanque e no culpabilizou usuários de drogas pela morte da criança, usando-a como palanque. Representantes da cúpula do Instituto de Segurança Pública presentes na coletiva disseram que o fato será investigado, mas que a política de enfrentamento se mantém no Rio de Janeiro.
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