Bahia abaixo de zero

Promessa do atletismo nacional nos anos 1990, ele se tornaria, anos mais tarde, técnico de um campeão olímpico do salto com vara, ótimo piloto de trenós e o principal agente nas denúncias de corrupção na Confederação Brasileira de Desportos no Gelo (CBDG).

Lendário entre aqueles que o conhecem, Edson Luques Bindilatti, de 38 anos, é o grande nome dos esportes de inverno do Brasil. Sua rica história ganhará, entre 9 e 25 de fevereiro, novo capítulo importante: participará de sua quinta Olimpíadas de Inverno, desta vez em PyeongChang, na Coreia do Sul. A classificação, nas provas do two-man e do four-man — em que duplas ou quartetos descem de trenó a quase 150km/h —, foi confirmada em 15 de janeiro pela Federação Internacional de Bobsled e Skeleton (IBSF).

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Em quase duas décadas no bobsled, este baiano de Camamu conseguiu enfim se preparar de forma adequada para disputar as Olimpíadas e agora terá a chance de realizar mais um sonho: colocar o Brasil em posição de destaque nos esportes de inverno. Algo que parece tão insólito quanto sua própria trajetória.

Para conhecê-la, é preciso voltar ao ano de 1999, quando Edson se sagrou campeão brasileiro de decatlo — modalidade do atletismo composta por dez provas —, logo em sua primeira temporada entre os adultos. O jovem atleta iniciava uma parceria promissora com o técnico Nélio Moura, referência no esporte e treinador da saltadora Maurren Maggi, após ter obtido o sexto lugar no Mundial Juvenil de Annecy, na França, em 1998.

Seu desempenho chamou a atenção não apenas dos profissionais do atletismo. Por isso, naquele fim de ano, foi procurado por Eric Maleson, brasileiro radicado nos Estados Unidos que monitorava os destaques da modalidade com propósito inusitado: montar uma equipe brasileira de bobsled para disputar as Olimpíadas de Salt Lake City, em 2002.

Sem nunca ter ouvido falar do esporte ou mesmo da existência dos Jogos Olímpicos de Inverno, Edson prometeu responder ao convite assim que estivesse a par do assunto. Por sugestão de Maleson, assistiu ao filme Jamaica Abaixo de Zero, inspirado na história da equipe de bobsled que representou a nação caribenha nas Olimpíadas de Calgary, no Canadá, em 1988.

Encantado pelo filme, retomou o contato alguns dias depois e aceitou o desafio. A viagem para Lake Placid, região montanhosa próxima a Nova York, nos EUA, foi uma espécie de apresentação oficial à modalidade. Na ocasião, recebeu as primeiras e únicas instruções de Maleson: “você só precisa correr, sentar no trenó e abaixar a cabeça. O resto deixa comigo.”

Realmente não havia muito mais a fazer. No bobsled, afinal, o piloto é o único a participar de cada etapa da prova. Os dois atletas no meio do trenó são os pushers, responsáveis por empurrar o veículo na largada, enquanto o brakeman, último a subir no trenó, aciona o freio ao final do percurso.

Dono de invejável condição atlética, Edson seria um dos pushers. Este, aliás, foi um dos argumentos de Maleson ao convidá-lo. Como a largada no bobsled exige muito do preparo físico, vários dos competidores são selecionados no atletismo. Além disso, pela semelhança entre os métodos de treinamento, não é preciso abandonar o esporte de origem. Foi o que Edson fez. Entre outubro e março, com as temperaturas mais baixas no Hemisfério Norte, ele se dedicava ao bobsled; no restante do ano, seguia no decatlo.

Equipe brasileira nas Olimpíadas de Sochi, na Rússia. Time ficou na vigésima nona posição. Crédito: IBSF/Charlie Booker

Entregar-se de corpo e alma à nova modalidade seria inviável por questões financeiras, porém. À época, sua única fonte de renda era o salário do clube de atletismo BM&F Bovespa. Além disso, o órgão responsável pelos esportes no gelo no Brasil, a Associação Brasileira de Bobsled, Skeleton e Luge (ABBSL), que mais tarde se transformaria em CBDG, sequer possuía funcionários. Eric Maleson, então atleta e presidente, fundou a entidade apenas para cumprir uma exigência do Comitê Olímpico Internacional (COI), que só autoriza a participação nos Jogos mediante a criação de uma associação nacional.

Outro motivo que o levou a se dividir entre os esportes era a possibilidade de disputar as Olimpíadas. Ainda que fosse o melhor decatleta do país, sua pontuação na prova ainda estava muito defasada em relação ao índice exigido, enquanto o critério de classificação para o bobsled à época era dos mais simples: disputar cinco competições em até três pistas diferentes nos últimos dois anos do ciclo olímpico.

Em Sochi 2014, a equipe realizou suas descidas com um trenó de segunda linha comprado da seleção de Mônaco e inferior à qualidade dos equipamentos dos adversários de ponta.

Com esta facilidade para obter a vaga, o quarteto formado por Edson Bindilatti, Eric Maleson, Matheus Inocêncio e Cristiano Paes, que se reunia apenas durante os campeonatos, ignorou os percalços da preparação e foi recompensado com o 27° lugar entre 34 trenós em Salt Lake City 2002.

A experiência em um evento desse porte, somada à paixão desenvolvida pelo bobsled, despertou em Edson planos mais ousados: voltar aos Jogos em condições de brigar com as melhores equipes do mundo. O que não imaginava é que levaria outros quatro ciclos olímpicos para que isso acontecesse.

Neste intervalo, as dificuldades foram ainda maiores do que de 2002. Em Turim 2006, por falta de equipamento, a equipe não treinou na pista antes da prova: o trenó brasileiro não chegou a tempo. Para piorar o quadro, o atleta Armando dos Santos foi pego no exame antidoping às vésperas das Olimpíadas e acabou cortado da delegação. A preparação para Vancouver 2010, por sua vez, ficou marcada pelo escândalo de corrupção na CBDG.

Com graves problemas administrativos e com as verbas federais bloqueadas, a entidade não teve recursos financeiros para custear despesas de treinos e competições, e o Brasil não se classificou para os Jogos. Já em Sochi 2014, além de não conhecer novamente a pista antes do evento, a equipe realizou suas descidas com um trenó de segunda linha, comprado da seleção de Mônaco e inferior à qualidade dos equipamentos dos adversários de ponta.

Foram anos difíceis também no atletismo, pois Edson não obteve sucesso em suas tentativas de classificação nem para as Olimpíadas de Atenas, em 2004, nem para os Jogos Pan-americanos do Rio, em 2007. Desmotivado e com idade avançada para almejar novos objetivos na modalidade, decidiu encerrar sua carreira, tornando-se treinador do salto com vara. Após uma conversa com a direção da equipe BM&F Bovespa, passou a integrar a comissão técnica de Elson Miranda, que treinava atletas do porte de Fabiana Murer e Thiago Braz. Entre 2009 e 2015, participa da conquista de três títulos mundiais – o bicampeonato adulto de Murer (2010 e 2011) e o mundial juvenil de Braz (2012) – e na quebra de recordes sul-americanos. O cargo de técnico e a atividade de personal trainer foram as soluções encontradas para que continuasse sonhando com um futuro nos esportes de inverno, já que o bobsled não lhe garantia um salário mensal.

Hora de chamar a responsabilidade

A trajetória inicial de Edson como técnico de salto com vara coincide com outra transformação em sua vida esportiva: após exercer as funções de pusher e brakeman, ele finalmente se torna piloto e capitão da seleção brasileira de bobsled. Surgia ali uma nova liderança entre os atletas na modalidade.

Mas sua atuação não se resume ao desempenho como atleta e treinador, já que viria a desempenhar também um importante papel institucional. Em 2010, inconformado com a má administração da CBDG, ainda presidida por Eric Maleson, que resultou na ausência da equipe brasileira nos Jogos de Vancouver, no Canadá, ele reuniu documentos que comprovavam uma série de irregularidades na confederação: descumprimento do estatuto, desvio de verbas e atraso nas prestações de contas. Em seguida, moveu uma ação judicial contra a entidade, solicitando o afastamento de Maleson da presidência. A Justiça atendeu ao pedido e determinou que Emilio Strapasson, ex-atleta de skeleton, fosse o interventor do órgão.

Torneio disputado em 2016 pela equipe brasileira. Crédito: IBSF/Charlie Booker

A parceria entre Edson e Strapasson representaria o início do processo de reestruturação da entidade, distanciando-a de sua história anterior. Para se ter ideia da herança deixada pela administração de Maleson, o primeiro campeonato disputado após a intervenção na CBDG, em Lake Placid, ficou marcado pelo seguinte episódio: pronta para realizar sua primeira descida, a equipe brasileira foi impedida de competir porque o proprietário do trenó exigia o pagamento dos aluguéis atrasados do veículo.

Primeiro como interventor, depois na condição de presidente, Strapasson passa a cuidar dos aspectos financeiros e administrativos da CBDG. Edson, por sua vez, planejou ações esportivas que possam fortalecer o bobsled brasileiro. Entre 2011 e 2017, quatro iniciativas propostas e executadas pelo piloto mudariam o rumo da modalidade no país.

A primeira delas foi a organização de uma seletiva para a montagem da equipe. O evento, realizado em São Caetano do Sul, em 2013, reuniu dezenas de interessados e consolidou o sistema como um método eficaz de identificar talentos para a seleção brasileira. Em Pyeongchang 2018, por exemplo, a delegação do país será composta apenas por atletas que participaram de seletivas nacionais.

O segundo passo foi conseguir um centro de treinamento para a equipe: o Núcleo de Alto Rendimento (NAR), em São Paulo, que abriga a única pista de push do Brasil, permitindo que a seleção, mesmo longe da neve, aprimore um fundamento primordial desse esporte: a largada.

Em 2017, ainda relacionado aos aspectos técnicos, Edson foi responsável direto pela contratação de José Eduardo Moraes para a vaga de head coach da seleção brasileira de bobsled. Ex-coordenador de preparação física da Confederação Brasileira de Rugby (CBRu) e com mais de vinte anos de experiência na área, Moraes revolucionou os métodos de treinamento dos atletas.

Além de ter organizado a primeira pré-temporada da história com a presença de todos os atletas em um mesmo local, ele incorporou um novo equipamento às atividades: a plataforma de salto Elite Jumping, desenvolvida por Irineu Loturco, diretor do NAR, que permite detectar a eficácia do método de treinamento. Foi essa tecnologia, por exemplo, que identificou a falta de resposta adequada de Edson a certos estímulos. Por isso mesmo, e visando uma melhora em sua movimentação, decidiu-se pela redução da carga de treinos.

Outra iniciativa do piloto que começa a apresentar bons resultados é o banco de dados da seleção brasileira. Desde 2015, Edson registra todas as informações referentes às pistas e aos equipamentos. Com isso, tanto ele quanto as próximas gerações de atletas poderão conhecer quais os traçados ideais, os segredos de cada curva e também as lâminas que devem ser usadas no trenó, conforme as variações climáticas e as condições da pista.

Não há dúvida quanto ao empenho e a preocupação em deixar um legado para os atletas também fora das pistas: desde 2013, ele é presidente do Clube Paulista de Desportos no Gelo (CPDG), associação que ajuda a disseminar os esportes de inverno no estado de São Paulo e que tem direito a voto na eleição para presidente da CBDG. A longo prazo, seu objetivo é fazer com que o clube assuma atribuições que estão a cargo da CBDG, como a organização de seletivas. Desse modo, as instituições que trabalham em prol dos esportes no gelo poderão atuar de forma integrada e dividindo as responsabilidades.

CHANCES NAS OLIMPÍADAS DE 2018

Mas antes de se dedicar ao desenvolvimento da modalidade no país, seu foco está voltado aos Jogos Olímpicos de PyeongChang. Pela primeira vez na história, o Brasil garantiu classificação na prova do two-man. No entanto, a expectativa por um grande resultado nas Olimpíadas está mesmo no four-man, no qual a equipe conquistou o título da temporada 2017/18 da Copa América e está entre as vinte melhores seleções do ranking mundial.

Ao contrário das participações olímpicas anteriores, dessa vez a equipe brasileira já conhece a pista de PyeongChang, competindo ali no ano passado, e possui um trenó novo à disposição, adquirido em 2015 junto à seleção da Letônia, uma das potências da modalidade. Outro aspecto favorável é o entrosamento do quarteto brasileiro, que tem na largada o seu ponto forte – justamente a única parte da prova em que todas as equipes estão em igualdade de condições, sem dependerem da qualidade do equipamento.

Por tudo isso, o objetivo do quarteto formado por Edson Bindilatti, Odirlei Pessoni, Edson Martins e Rafael Souza é superar a melhor colocação do país na história dos Jogos: o 25° lugar em Turim 2006. Porém, tanto a equipe brasileira quanto a CBDG têm uma meta mais ousada: ficar entre o 9° e o 17° lugares. Sonho que finalmente pode ser concretizado após 19 anos de dedicação e amor ao bobsled.

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