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O desconhecido universo das lingeries

Quando Cora Harrington lançou o The Lingerie Addict uma década atrás, o blog visava cobrir peças íntimas do que ela chamava de uma “perspectiva de moda”, em vez de sites que agregavam releases de relações-públicas ou se voltavam para conteúdo extremamente sexualizado. Hoje o site tem centenas de milhares de leitores mensais e apresenta avaliações, editoriais de foto estilo revista e instruções sobre tudo, desde tirar medidas a fazer sua própria sessão de fotos com lingerie. O blog também é incrivelmente inclusivo: como uma mulher negra queer, Harrington sabe o que significa não se ver nas ofertas íntimas do mainstream e usa essa plataforma para tornar lingerie acessível para todo mundo.

Seu novo projeto é um livro que serve como uma fonte que ela gostaria de ter tido quando começou a comprar lingerie. In Intimate Detail saiu dia 28 de agosto e ensina o leitor sobre estilos de lingerie, bons cortes, quando usar lingerie e como cuidar das suas peças, e vem com lindíssimas ilustrações em aquarela. Para comemorar o lançamento, falei com Harrington sobre seu blog, seu livro e para onde ela acha que a indústria de lingerie está caminhando:

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VICE: O que te inspirou para começar o Lingerie Addict?
Cora Harrington: Eu estava saindo com uma pessoa na época, e queria achar alguma coisa legal para usar para ela – que acho que é um sentimento bem comum. Procurei na internet mas não consegui achar nada. Não encontrei nenhum conselho, avaliação ou recomendações sobre peças de lingerie. Havia dois blogs sobre lingerie na época, mas eram mais focados em divulgações para a imprensa, tamanhos de sutiã e editoriais. Eles não eram centrados em dar conselhos sobre lingerie – especialmente de uma perspectiva de moda, do jeito como muitos blogs de moda faziam na época. Então só comecei a procurar coisas e ver o que conseguia encontrar.

Na minha busca topei com um par de meias 7/8 de uma marca alemã. Eles tinham pavões bordados nas meias e eu nunca tinha visto nada assim antes. Quer dizer, cresci no sul dos EUA, então fui criada na igreja e você usava meias para trabalhar. Então eu estava familiarizada com o conceito de meias finas, mas nunca tinha visto nada tão bonito e decorativo como aquilo. E senti que tinha sido privada desse mundo, porque muita gente só compra lingeries que vê na Victoria’s Secret ou no Target ou Walmart. E senti que tinha encontrado esse mundo, quase uma realidade alternativa, onde lingeries eram bonitas.

Então escrevi um post tipo “Uau, que meias lindas”. Acontece que havia outras pessoas procurando conteúdo que não estivesse centrado em fetiche por lingerie ou “se vestir sexy para o seu homem”, sabe. O que eu estava fazendo era mais na linha “Olha, essas coisas são bonitas – o que você acha?” E não havia muitas publicações fazendo isso.

Como você mantém o blog inclusivo e se certifica de promover positividade corporal em vez de apenas lucrar com isso?
Você sabe quando positividade corporal é orgânica e parte de uma empresa versus quando isso está sendo só usado por eles. Isso vai mudar mesmo alguma coisa? Ou vocês só estão surfando numa onda de lucro?

Sou uma mulher negra numa indústria que não tem muitas mulheres negras. Sou uma mulher queer numa indústria que não tem muitas mulheres queer. Logo do começo, não me vendo representada, meu ponto de vista respeitado ou minhas necessidades atendidas, não só eu queria trazer minha perspectiva para o meu site, mas também alcançar e incorporar outras perspectivas que não são minhas. Por exemplo, não sou plus-size, mas desde que comecei a trazer outras escritoras para o site, sempre tivemos uma colaboradora plus-size. Sei como é estar interessada em moda íntima mas acabar sentindo que isso não pra você. E não quero que as pessoas se sintam assim quando entram no meu site.

Isso não significa que posso fazer tudo. Não estamos ficando ricos. Mas tento fazer tudo que posso no sentido de ter uma variedade de colaboradores e de opiniões, onde você pode achar algo que vai te ajudar na sua jornada pelo mundo da lingerie.

Como você vê a indústria de lingerie evoluindo nos EUA, e qual o maior problema nela hoje?
O que vemos como legado das marcas é uma falta de interesse em acompanhar os clientes – acompanhar o que os clientes querem, como eles compram, como os clientes pensam sobre lingerie.

Especialmente nos EUA, a indústria de lingerie está menos interessada em promover e explicar produtos para os clientes. Há um tremendo vácuo de conhecimento quando se trata de moda íntima nos EUA. Muitas marcas não capitalizam nisso – em vez de educar os clientes sobre tamanhos diferentes de sutiãs ou o que determinada costura num sutiã pode fazer por mulheres de peito grande ou plus-size, ou diferentes qualidade de tecidos (entre outras complicações) – elas se enquadram em “Agora estamos vendendo nessa cidade”. Mas e quanto a áreas mais rurais? Muitas pessoas simplesmente não têm acesso. Algumas startups estão resolvendo esse vácuo agora. Empresas como a Third Love estão preenchendo esse espaço.

Estou imersa em lingerie todo dia. Posso olhar para uma peça e ter uma boa noção de quanto custa, falando de modo geral. Mas isso porque tenho olhado para lingerie todo dia há 10 anos. Acho que não podemos esperar que as pessoas gastem $60, $80, $100 num sutiã quando elas não sabem o que vão ganhar em troca.

Foto por Lars Kommienezuspadt.

Quais desafios você encara para manter o blog?
Ser alguém de fora da indústria sempre foi uma questão; quando comecei o blog, comecei a frequentar convenções e falar com as marcas, muitas delas me disseram “Não falamos com blogueiros”. Elas não queriam ter nada a ver com meu site. E algumas ainda não acreditam na internet e em compras online. Bom, a internet está aqui pra ficar, gente.

Então esse é um desafio. O fato de que somos virtualmente independentes também é um desafio. Estou com 30 e poucos anos, sou uma mulher negra com cabelo black. E adoro modelar mas “não pareço uma modelo”. Acho que é mais difícil, de certa maneira, conseguir parcerias diferentes. Ter certeza que temos o orçamento de mês para mês é um desafio constante. Não temos um pé-de-meia para emergências. Está tudo investido nisso.

E sei que desde o ano passado, os avaliadores precisam comprar sua própria lingerie para evitar qualquer pressão dos fabricantes . Então isso deve ser bem difícil.
Sim! Mudamos nossa política ano passado para não aceitar amostras – e como referência, nossa política sempre foi não aceitar dinheiro pelas nossas avaliações e que receber amostras não influenciava nossas avaliações. Abordamos revisões de maneira ética. Mas ultimamente, sentimos que havia várias marcas que achavam que mandar produtos era como comprar um post patrocinado, e que podiam nos dizer o que eles queriam que disséssemos sobre o produto.

Começando ano passado, não aceitamos mais amostras de nenhuma marca. Qualquer avaliação de marcas no site são de peças compradas por mim ou pelas colaboradoras. Nossos leitores sempre souberam o que defendemos. Mas o feedback que recebemos quando paramos de aceitar amostras é totalmente positivo. Os leitores sentem que podem confiar nas nossas avaliações e no que temos a dizer. Eles sabem quando realmente gostamos de uma peça, e que se não gostamos, gastamos nosso próprio dinheiro nisso. Estamos investidos nisso com eles, e isso faz a diferença.

Qual seu conjunto de lingerie favorito para fazer uma sessão de foto?
Gosto muito dos vestidos Kiss Me Deadly da Vargas Girdle, eles são inspirados num tipo vintage de lingerie chamado corselette que era popular nos anos 50. Me senti muito bem neles. E meu conjunto Dita Von Teese Madame X em literalmente qualquer cor. Adoro esse conjunto, é uma das melhores lingeries no mercado agora, ponto. Adoro as cores de joias e o preto – me sinto incrível sempre que uso, os detalhes de costura são lindos. O sutiã parece que deveria ser muito mais caro.

Também gosto dos meus shortinhos Karolina Laskowska. Quer dizer, são shorts de renda, então não são práticos porque são muito delicados, mas são lindos e uma expressão de alegria da lingerie sem se preocupar com a praticidade, que é algo que adoro neles. Na minha lista de desejos tenho um robe Catherine D’Lish, que desejo há anos. Ahhh, quero muito um desses.

Sei que você escolheu ilustrações em aquarela para manter o livro inclusivo – li seus tuítes sobre isso. O que mais você fez para tornar o livro mais inclusivo?
Mantive a linguagem do livro de gênero neutro. Uma coisa que você pode notar, se procurar, é que não há referências como “ela, dela, mulher”. Não vamos adivinhar o gênero do leitor. É o tipo de coisa onde, se você é mulher, você pode não notar. Mas se você é uma pessoa trans, não-binária ou genderqueer, você vai poder ler o livro e se sentir incluída, o que é muito importante para mim. Sei que muitas conversas que temos sobre lingerie pressupõe que todo mundo que usa sutiã é mulher, o que não é verdade. Há apêndices no final com conselhos para pessoas que são trans-femininas ou trans-masculinas. Mantemos a linguagem de gênero neutro até o final do livro.

Também falamos sobre lingerie para pessoas com deficiência, e temos seções para pessoas com fibromialgia ou vulvodinia. Eu queria que as pessoas, no livro em geral, se tivesse algo específico sobre seu corpo, sobre sua vida, sua situação, que isso seria abordado. Era importante para mim que qualquer pessoa – não teria como cobrir todo mundo – mas que quase qualquer pessoa pudesse pegar esse livro e sentir tipo “OK, a autora tem algo aqui para mim, há espaço para alguém como eu, e há alguém pensando em mim, querendo que eu goste de lingerie”. Me sinto abençoada e privilegiada por ter encontrado uma editora que embarcou nisso comigo.

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