A quarta temporada de Narcos acompanha a ascensão do Cartel Guadalajara nos anos 1980 e os eventos que lançaram a interminável guerra às drogas mexicana. Enquanto as histórias de Miguel Ángel Félix Gallardo (Diego Luna), a.k.a. El Padrino, e do agente do DEA Kiki Camarena (Michael Peña) colidem na tela, fiquei imaginando como traficantes de drogas mexicanos de verdade estavam reagindo à adaptação (se é que estavam). Curioso, abordei alguns deles com uma proposta simples: pedi os produtos deles para serem entregues na minha casa, ofereci uma cerveja e usei a droga com eles. Enquanto conversávamos sobre as atividades ilícitas deles, decidimos encontrar episódios da série que – seja por nostalgia ou relevância pessoal – provocaram as maiores respostas do público. Aqui vai o que eles tinham a dizer.
Os nomes foram mudados para proteger as identidades dos entrevistados.
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Lalo, 35 anos
Cresci numa era quando Amado Carrillo Fuentes, El Señor de Los Cielos (“O Senhor dos Céus”), era o maior narcotraficante do México. Eu tinha 10 anos na época. A família da minha mãe é de Mazatlán, Sinaloa, e cresci ouvindo histórias sobre um certo narco. A palavra narcotraficante, “aquele que move drogas”, na verdade vem do grego, narcotikos, “tornar rígido ou entorpecido” – uma conotação que não era tão sangrenta quanto hoje. Um dos amigos do meu tio foi castrado depois que uma venda de drogas deu problema, mas essa é a única história violenta que lembro daquela época. Depois disso, a ideia de tráfico de drogas ficou na minha cabeça. Em se tratando do Narcos: México, gosto da fotografia, da história e do sotaque do [Rafael] Caro Quintero. É um sotaque de oceano e ondas, realmente chinola [autêntico de Sinaloa]. Me lembra minha avó.
Alguns anos atrás, larguei a faculdade de comunicação e comecei a vender livros e CDs usados. Na época, uma amiga – que namorava um cara que trabalhava como segurança de entregas para casas seguras – me ofereceu um quilo de maconha muito barato e vendi por 100 pesos [cerca de R$20] cada saco, e lucrei o triplo. Agora vendo dois quilos de maconha normal a cada 20 dias e cerca de 280 gramas de Morada de Tecate [purple kush] da Baixa Califórnia. Não me considero um narco; sou mais tipo um vendedor de Avon. É só ligar que eu te entrego uns “cremes”.
A versão colombiana de Narcos era foda, mas não tanto quanto a versão mexicana que acabamos de assistir. Quando trafica, você tem muito mais tempo para assistir televisão. Bem que eu gostaria de ter amigos ricos como Del Cochiloco. Ele parece um filho da puta de verdade na série. Meu tio diz que eles pegavam pesado na farra em Mazatlán nos carnavais. Esse puto do Cochiloco sabia dar uma festa! Lembro que estava na casa do meu avô quando meu tio contou que ele tinha acabado de ser morto.
El Gordo, 29 anos
Vendo cocaína, mas tento ser inteligente nesse negócio. Nasci em Caliacán, Sinaloa. Morei em Los Angeles até a adolescência, mas saí de lá porque tive problemas com um carregamento de metanfetamina que a polícia apreendeu por um engano meu. Antes de ter mais problemas com os chefes, me mudei para a fronteira mexicana. Trafico drogas há dez anos agora. Assisto Netflix porque minha esposa gosta, e essa série sobre traficantes chamou minha atenção. Estamos na moda faz alguns anos.
Em Narcos: México, tem um episódio onde a polícia queima vários acres de maconha de Caro Quintero. Me identifiquei com isso porque os policiais já me foderam antes, mas mais diretamente com dinheiro. Uma vez eu estava no carro com a minha esposa quando fomos parados pela polícia estadual por suposto excesso de velocidade – mas todo mundo sabe que essa agência está envolvida no jogo do tráfico. Eles me obrigaram a sair do carro, me empurraram para o lado do porta-malas e fizeram minha esposa entrar na viatura. Quando perguntaram qual era minha ocupação, eu disse que era “do campo” – um trabalhador agrícola na Califórnia – e eles pediram pra ver minhas mãos. O policial disse “você não tem nenhum calo ou corte, [suas mãos] são supermacias, você é traficante”. Eles já sabiam que eu era quando me pararam. Tem sempre inveja nesse campo de trabalho.
O policial pegou meu celular, começou a inspecioná-lo e de repente ele tocou. O policial atendeu e se passou por mim. O cliente disse algo como “quero 300 páginas em branco”. Isso confirmou as suspeitas deles e eles começaram a vasculhar meu carro, aí acharam uma caixa magnética cheia de papelotes que eu grudava no motor. Eles até sabiam onde era meu esconderijo. Quando vi que eles queriam realmente me foder, eu disse que tinha 15 mil pesos [quase R$3 mil] de propina na minha casa se eles me deixassem ir.
Eles vasculharam a casa inteira e encontraram 60 mil pesos [R$11.500] que eu não estava planejando entregar pra eles. Eles acabaram levando 75 mil pesos [mais de R$14 mil]. “Fique com o produto aí pra te ajudar com as vendas”, me disse um deles, que parecia ser o chefe. “Mas se você vai continuar vendendo aqui, tem que pagar 15 mil pesos [cerca de R$2.800] todo mês ou vamos te parar sempre.” Naquela semana, mudei de apartamento e pintei meu carro de outra cor. Pra mim, eles me foderam igualzinho foderam com Caro Quintero – ou pelo mesmo, acho que ele se sentiu do mesmo jeito que eu. Desde então, quando as ruas estão cheias de policiais nos finais de semana, mando minha esposa fazer as entregas ou vamos juntos com nosso filho de um ano. Ter um bebê ajuda a passar pela polícia.
Gisela, 35 anos
Fiquei interessada quando vi a propaganda de Narcos: México. Vendo cogumelos que meu namorado planta e maconha medicinal que trazemos nos finais de semana de San Diego. Só vendo para amigos e raramente saio de casa. Assisti a primeira temporada de Narcos com Pablo Escobar, mas era muito mórbido: não gostei tanto assim, mas assisti tudo porque fiquei curiosa com o tipo de organização que operava na Colômbia e como eles tinham conseguido cometer aqueles atos de terrorismo. Li Narcoland de Anabel Hernández um tempo atrás, e achei que seria legal assistir a série e me identificar com um personagem como El Mexicano.
A série me deixou meio nostálgica do tempo quando os irmãos Arellano Félix mandavam na Baixa Califórnia. O personagem de Güero Palma era bem legal, e Cochiloco era um escroto; eram esses caras que apareciam nos jornais. Até consegui ouvir um narcocorrido dos Tucanes de Tijuana no fundo. Gosto muito da atuação do Diego Luna.
No começo achei que a série parecia só outra novela de drogas como as da Telemundo, mas é muito melhor. Claro, não é um Sopranos, mas gostei bastante. Até me senti como uma das personagens da série, não tão bem quanto a Isabella, que se vê como a Rainha do Pacífico. Ela nasceu em Mexicali, como eu.
Aarón, 28 anos
Me mudei para a fronteira de Cosalá, Sinaloa, quando estava no colegial. Meus tios plantavam maconha lá. Eu vendo cocaína. Por um tempo trabalhei como balconista num mercadinho 7-Eleven para não chamar a atenção dos vizinhos, para eles verem que eu trabalhava e manter as aparências. É suspeito ter uma família, não ter trabalho, mas ainda ter dinheiro. Trabalhei lá por um ano, fiquei de saco cheio e saí. Agora só vendo cocaína mesmo. Quando trabalhava de dia e traficava à noite, eu estava sempre cansado.
Tem uma cena na série Narcos: México onde eles estão na casa de um cubano [Sicilia Falcón] e tem uma puta festa rolando – com todo mundo cheirando pra caralho e outras pessoas em uma jacuzzi ou participando de orgias. Aquela cena ficou na minha cabeça porque uma coisa parecida aconteceu comigo semana passada.
Filete, 33 anos
Quem mora na fronteira está familiarizado com histórias do tráfico. Você conhece alguém que transporta drogas para os EUA ou tem um parente que é traficante, mas mesmo quando parece só uma piada, o tráfico está no ar.
Não sou muito fã da série Narcos, mas gostei de alguns episódios da versão mexicana. Não tenho críticas; é simples entretenimento. Eu conhecia essas histórias das notícias, ou reconhecia os personagens de algum narcocorrido que tinha ouvido antes – ou porque todos os meus parentes de Sinaloa e Jalisco falam sobre esses assuntos em toda refeição.
Frequentei o primário e o colegial em Calexico [uma cidade californiana que faz fronteira com Mexicali na Baixa Califórnia, México]. Eu cruzava a fronteira todo dia e fazia a lição de casa na Biblioteca Memorial Camarena [em Calexico] durante as tardes. Agora que assisti Narcos: México, entendo Kiki Camarena. Ele nasceu em Mexicali e morou em Calexico também. Vendo cocaína e maconha. Sou um palhaço comparado com os traficantes da série, mas tem alguma semelhança aqui – ou pelo menos consigo me ver neles. Uma vez passei quatro meses na cadeia porque acharam 50 caixas de Rivotril – um remédio controlado – que eu estava vendendo do porta-malas do meu carro. Vendo drogas para não ter que arrumar qualquer trabalho escroto pra viver. É isso que me inspira na série.
Ulises, 29 anos
Vendo cocaína, maconha e LSD. Vi pessoas fumando maconha num filme uma vez e, quando comecei a sair mais tarde, eu queria experimentar e depois acabei vendendo. Aquela sensação era inofensiva, mas comecei a usar coisas mais pesadas quando me envolvi com música eletrônica, o que me levou para psicodélicos como o LSD – que, de novo, comecei a vender mais tarde.
Achei a série Narcos: México interessante porque ela coloca um rosto nos personagens das histórias que ouvimos a vida inteira. Meu irmão tinha alguns CDs do El TRI [uma banda de classic rock mexicana]. Eu gostava muito daquela música deles chamada “Sara”. Ouvi essa música várias vezes, mas só agora entendi que eles estavam falando do Caro Quintero. Foi nessa música também que fiquei sabendo quem era Don Neto e Miguel Ángel Félix Gallardo; também conheço o narcocorrido dos Los Tigres del Norte “El Jefe de Jefes”, que é sobre Félix Gallardo também.
Teve uma época em que eu estava tomando cerca de mil pesos [mais ou menos R$ 200] em LSD toda semana. Mas comecei a perder a cabeça, como Caro Quintero naquele episódio em que ele larga a cocaína. Meu cérebro estava zoado: comecei a ter flashbacks e alucinações; mesmo quando não tomava LSD, eu via demônios e monstros. Além disso, com o ácido, se você pensa em alguma coisa ruim, um mar de coisas péssimas ganha vida e se choca contra você. Fui para uma clínica de desintoxicação e quando saí comecei a vender. Eu ex-colega de escola que mudou para Calexico me vende o LSD. Nos falamos pela internet e nos encontramos na cerca da fronteira, onde ele me passa os papéis em caixas de DVD. O LSD no México, pelo menos pra mim, dá dor nas costas e nos ossos, mas esse que vendo agora atua mais rápido no organismo. Agora o tráfico de drogas entre México e EUA está invertido; até a maconha que vendo é gringa, mas o pó sempre vem de Sinaloa.
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Tradução do inglês por Marina Schnoor.