Há dez anos, São Paulo parou. Pânico na Zona Sul. Pânico em SP. Caos mental geral. Na noite de 12 de maio de 2006, sexta-feira, a maior organização criminosa da história do Brasil, o PCC, pôs em prática um ataque simultâneo a dezenas de alvos pela cidade e motins por cadeias em todo o estado. 59 agentes policiais foram mortos. A retaliação veio com força total, de farda ou capuz, e, nos dias seguintes, centenas de civis morreram por arma de fogo. Esse bangue-bangue urbano moderno virou São Paulo do avesso, e, guardadas as devidas proporções, deixou uma marca profunda na psiquê coletiva da cidade, à lá 11 de setembro. Aproveitamos a ocasião de uma década dos Crimes de Maio para relembrar, com uma série de matérias em todos os nossos sites, a fatídica semana, um trauma social que até hoje tem imensa influência na sociedade paulista, das favelas ao Jardins, passando pelo Palácio dos Bandeirantes.
A VICE teve acesso a seis cadernos de contabilidade do PCC, apreendidos pela equipe de investigações do 4º DP de Guarulhos (grande São Paulo), em 2 de março deste ano, na casa de Leandro Maurício Gomes, 33, apontado pela polícia como tesoureiro da facção na cidade.
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A grande responsa do “mecânico” era receber as mensalidades de membros do partido na região. O pagamento é conhecido como “cebola”. Além da cebola ele também monitorava o recebimento do pagamentos de rifas, ajudas e da venda de drogas.
Segundo as contabilidades feitas pelo suspeito, ainda foragido até a conclusão desta matéria, eram movimentados somente com a venda de drogas no bairro dos Pimentas, área controlada por Gomes, entre R$ 800 mil e R$ 1 milhão mensalmente.
Segundo as anotações nos cadernos do PCC, só em Guarulhos, 200 pessoas prestavam contas ao tesoureiro foragido. Além disso, foram encontrados comprovantes de pagamentos oriundos de todos os estados brasileiros que, não necessariamente, eram pagos a Gomes. Ele fazia uma espécie de auditoria do crime.
Os pilares econômicos do partido
Cada um de seus setores é bem delimitado. A cúpula do PCC, por exemplo, é conhecida como Sintonia Final Geral. Os nomes mais populares deste setor são Marcos Willians Herbas Camacho, o “Marcola”, e “Leandro Rafael Pereira da Silva, o “Léo Gordo”.
Eles atuam como conselheiros na presidência de uma empresa. Ambos estão detidos no presídio de segurança máxima Presidente Venceslau (cerca de 600 km da Capital).
Fragmentos de um “salve” anotado nos cadernos. Foto: Felipe Larozza/ VICE
As áreas de atuação do PCC são chamadas de “sintonia”. Sempre que esta palavra é mencionada, designa uma espécie de departamento ou ainda o cargo de chefia de algum criminoso que gerencia o setor.
Partindo dos Sintonias Gerais, a hierarquia da facção vai descendo até os soldados.
Sintonias do Progresso, da FM e da 100%
Esses setores são responsáveis pela comercialização de drogas no atacado e no varejo, dentro e fora do sistema carcerário. O principal pilar econômico da facção.
A sintonia do progresso cuida da venda no varejo, a sintonia da FM, no atacado, as biqueiras, a 100% cuida da venda de drogas puras ou com melhor qualidade, cada setor é gerenciado por uma pessoa diferente.
“O PCC, assim como uma empresa, precisa de renda. E a facção consegue isso de várias maneiras”, explicou o delegado Fernando Santiago, responsável pela apreensão dos cadernos da facção.
Os pontos de venda de entorpecente pertencem exclusivamente ao PCC. As biqueiras são atribuídas a responsáveis, mas é como se o fossem administradores de uma filial (a dona efetiva da boca de fumo é a facção).
Sintonia da Cebola
Um dos “departamentos” mencionados pelo delegado é a Sintonia dos Cebolas, que no linguajar dos criminosos significa mensalidade. Cada membro que ingressa no PCC, após um “batismo”, se vincula à facção com uma obrigação dentro de alguma das Sintonias e todos são obrigados a pagar a Cebola – que era gerenciada por Gomes, em Guarulhos.
Os valores da mensalidade variam entre R$ 150 e R$ 800 e podem ultrapassar este montante, de acordo com o posto do criminoso dentro da hierarquia da organização.
Membros do PCC conversando sobre o pagamento da cebola. Fonte: Polícia Civil
“Esse dinheiro é levantado, geralmente, mediante a realização de atividades criminosas. O PCC estimula a pessoa a ser criminosa pelo resto da vida”, disse o delegado.
Somente na casa do tesoureiro guarulhense, a polícia localizou cerca de R$ 5 milhões em comprovantes de pagamentos de mensalidade. A maioria dos papéis está em nome de mulheres, usadas como laranjas para dificultar a localização dos reais membros da facção pela polícia. As notas são fotografadas, enviadas pelo WhatsApp e depois contabilizadas em cadernos, manualmente.
Presos não pagam a cebola. As dívidas que eventualmente um preso possa contrair ocorrem junto aos sintonias que vendem drogas, lícitas e ilícitas, dentro do sistema. Seriam os sintonias da fumaça (cigarro) e do progresso interno (maconha e cocaína, por exemplo).
Outra forma de angariar dinheiro do PCC é receber parte do que é roubado por seus membros. A partir do momento em que a facção sabe que houve uma empreitada criminosa bem sucedida, parte do que foi roubado é destinado à facção também, além do pagamento da mensalidade.
Alguns membros que contraem dívidas com o partido oferecem, em alguns casos, as irmãs, companheiras e também os próprios corpos como pagamento, mediante sexo.
Sintonia da Ajuda
Outro pilar financeiro da facção é a Sintonia da Ajuda. Seria como a oferta paga em uma igreja, além do dízimo (no caso do PCC, o Cebola).
A ajuda é informada pelos “salves”, as mensagens enviadas para os membros do partido – antigamente feitas por cartas e atualmente pelo WhatsApp. O dinheiro da ajuda pode ser requerido tanto para auxiliar um irmão que foi baleado, ou ainda para auxiliar no pagamento de honorários do advogado de um criminoso preso, ou até mesmo acertar propina com policiais corruptos que prenderam algum membro do partido. “O PCC é uma organização que precisa de verba e, para conseguir isso, é o setor financeiro que a mantém viva”, afirmou o delegado.
Sintonia das Rifas
Outro importante pilar financeiro da organização é o das rifas. Sempre são feitas e membros do partido são obrigados a participar. Nos cadernos apreendidos do Sintonia do Cebola de Guarulhos foram encontrados itens para sorteio e o nome de pessoas agraciadas. Os prêmios indicados são apartamentos, carros, bicicletas, motos e até uma pistola calibre 45.
Quando a rifa é sorteada, é feito um salve para informar o resultado, geralmente pelo WhatsApp. Isso é uma forma de se ter uma “transparência”. Dentro da facção, qualquer tipo de mancada, principalmente o desvio de valor, independentemente de qual for, pode ser punida com a morte. “Dificilmente você vai ver alguém desviando grana”, disse o delegado.
O PCC é uma organização que surgiu para defender fins ideológicos, resumidos no lema “Paz, Justiça e Liberdade”. O partido nasceu para promover um bem estar ao preso. “Atualmente, ele pensa em lucrar, não que tenha deixado completamente de lado as motivações ideológicas”, explicou Santiago.
Além das finanças os cadernos revelaram à polícia diversas gírias usadas para desbaratinar as investigações, a facção nomeia cada um de seus setores com uma alcunha temporária. Isso é feito para ludibriar a polícia. Os únicos nomes que não mudam são os dos sintonias gerais, disciplinas e dos “torres” (que estão hierarquicamente abaixo somente da principal cúpula do partido).
Essas são algumas das linhas mais constantes nos cadernos:
Cocaína – Nike
Óleo de cocaína – Puma
Maconha – Mizuno
Todos os componentes de um grupo fazem alusão aos componentes de outro grupo.
O mesmo ocorre com representantes da lei:
Juiz – Doril
Delegado de polícia – Dipirona
Promotor de Justiça – Anador
Diretor de presídio – Analgésico
Agente penitenciário – Xarope
Também são usados códigos alfanuméricos para falar de regiões, inclusive de países da América do Sul como Paraguai, Bolívia, Colômbia, Guiana (que oferecem a matéria prima para a facção). O Brasil somente importa a droga que comercializa. Quando o delegado do 4º DP encontrou os cadernos sentiu uma “grande emoção”.
“O material é muito vasto, a polícia conseguiu acesso a contas online de criminosos. O conteúdo das investigações é mantido em sigilo”.
Quando questionamos ao Dr. Fernando sobre as consequências para o tesoureiro ele foi direto e reto. “O Leandro (tesoureiro) vai ser cobrado por qualquer coisa que repercuta da apreensão dos cadernos. Ele deve estar temente mais ainda”.
Ele acrescentou que, mesmo que por dívida, o tesoureiro que teve os cadernos apreendidos vai entrar para o Livro Negro da Facção.