GTA XX é a série especial da VICE Brasil, com entrevistas e análises exclusivas, que celebra os 20 anos da franquia que mudou tudo nos games.
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Matéria originalmente publicada no Waypoint.
Desde seu primeiro jogo em 1997, a série Grand Theft Auto vem sendo acusada de glamorizar a violência. Mas é difícil levar essas críticas a sério.
Veja o GTA original, por exemplo. Apesar de ter dar mais dinheiro ou “pontos” por mortes – e quanto mais destruição causava, mais você tendia a avançar – isso dificilmente é um grande diferença ou mais chocante que milhares de outros jogos. Pelo contrário, a estética exagerada e altamente pixelada de GTA 1, perto de, digamos, DOOM, Postal e outros jogos mais “pesados” da era, faz o jogo parecer comparativamente inofensivo. Grand Theft Auto III era igualmente antissocial. 3D, sim, mas passado numa pocilga chuvosa da Costa Leste dos EUA, onde as únicas coisas que você podia comprar eram favores sexuais e armas. Então dizer que Grand Theft Auto “glamoriza” ou “sensacionaliza” a violência, quando tudo que a violência te rendia eram ferramentas para cometer mais violência, era meio equivocado.
Equivocado, pelo menos, até 2002 e o lançamento de Grand Theft Auto: Vice City – o jogo cujo orçamento de marketing ajudou a lançar a VICE no Reino Unido.
Eu chamaria Vice City de o primeiro Grand Theft Auto realmente polêmico, não porque contém mais sangue, mais sexo ou mais xingamentos (na real, nem dizem “fuck” no jogo) que seus antecessores, mas porque faz o crime e a violência compensarem, e pagando bem. Em Vice City, quanto mais missões você completava — quanto mais gente matava — mais chiques eram as roupas e acessórios que você podia desbloquear. O dinheiro que você ganhava, também por matar, podia ser investido em mansões ou negócios que te geravam ainda mais dinheiro.
E apesar de, quanto narrativa, Vice City ser uma variação sem vergonha e meio decepcionante de Scarface, até na decoração de interiores da mansão do protagonista Tommy Vercetti, o jogo não acaba com uma mensagem moral vital e quase edificante. Enquanto a violência de Tony Montana literalmente o alcança, T. Vercetti, depois de tirar incontáveis vidas com uzis, katanas e M60s, chega ao final de Vice City mais rico, respeitado e poderoso que nunca.
O jogo é baseado numa equação inflexível. Os irmãos GTA, Sam e Dan Houser, podem não tê-la formulado originalmente, mas como mera ilustração vamos chamá-la de Equação Houser.
Violência cometida (v) é proporcional (∝) ao dinheiro e ao status obtido (m). Ou seja: (v ∝ m)
Vice City é controverso porque carrega uma mensagem realmente amoral: quanto mais mal você faz, mas bens você recebe.
E o mundo fundado nesse preceito – o mundo onde matar é igual a enriquecimento material e pessoal — também era muito legal. Seus carros em Vice City eram todos modelos esporte que você tinha visto em programas de TV como Miami Vice ou Starsky and Hutch. As estações de rádio que você ouvia tocavam um hit atrás do outro; só sucessos dos anos 80. E as pessoas com quem você trabalhava — seus amigos no jogo — eram ícones da cultura pop. Eles eram dublados por Dennis Hopper, Lee Majors e Danny Dyer; você jogava como Ray Liotta de Os Bons Companheiros. Além de beneficiar alguns gangsteres ricos, uma correlação matemática entre violência e sucesso aparentemente fez Vice City meio que um paraíso, capaz de te dar uma boa dose de nostalgia. Não era só um lugar onde violência compensava. Ela um lugar mantido e tornado belo pela violência, onde você desejava estar.
Em 2002, quando videogames ainda eram culturalmente marginais, um passatempo idiossincrático raramente ligado a nomes da música e cinema mainstream, a presença de músicas e vozes que você reconhecia redobrava seu efeito. Vice City não era apenas gratuitamente violento, a produção era cara. Era um jogo da lista A. Se o jogo tocou os nervos de críticos sociais e das artes, é porque, talvez pela primeira vez, a vulgaridade tradicional dos videogames recebia credibilidade cinematográfica. Vice City era desconfortavelmente sem fibra moral, mas também impossível de ignorar, já que tinha certificados culturais de auto valor de produção, envolvimento de celebridades e popularidade. Ele tinha o potencial de se espalhar.
O que realmente aconteceu. Apesar de — ou talvez por causa disso — ser censurado na Austrália, ameaçado de ação legal pelo então prefeito de Nova York Michael Bloomberg, e ter tomado um processo de $600 milhões contra sua desenvolvedora, a Rockstar, Vice City se tornou um dos videogames mais vendidos e influentes dos últimos 20 anos. Seu pecado moral mais flagrante – uma árvore de missões onde você escolhia assassinar membros de uma gangue haitiana, que até a notoriamente liberal Rockstar decidiu editar de versões posteriores – não afetava seu prestígio.
Se você jogou recentemente Battlegrounds, South Park: The Fractured but Whole ou qualquer outro videogame onde você é encorajado a ser violento e malicioso num mundo aberto, colocando em primeiro plano e formalizando esses tipos de base, esses prazeres interativos – por tornar videogames violentos uma aposta cultural e válida, parecida com a música pop – devem alguma coisa a Grand Theft Auto: Vice City, o jogo que fez matar e roubar virtualmente algo muito recompensador.