A luta continua. O Benjamim está na rua.
Fotografia de Gonçalo Pôla.

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Entrevista

A luta continua. O Benjamim está na rua.

Luís matou Walter, fez nascer Benjamim e Benjamim criou "Auto Rádio".

Há uns anos o Luís foi para Londres. Meteu o Walter Benjamin na mala e propôs-se a aprender mais sobre aquilo que por cá já andava há muito a fazer. Como produtor, misturador, músico, arranjador, Walter tinha currículo largo e de respeito. Melodia, harmonia, uma capacidade de acertar na canção perfeita. Fossem as suas, ou as de outros, como B Fachada, Márcia, ou João Coração. Um mundo pop de coros, sopros, teclados e guitarras, era isso.

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Na diáspora estudou engenharia de som e trabalhou como técnico, aperfeiçoou-se. De volta a casa dedicou-se a burilar as novas canções que lhe foram assaltando o espírito ainda emigrante. Canções cantadas em português, porque para dizer as coisas que o Luís agora queria dizer, o inglês não era opção. E assim, com a naturalidade que a consciência lhe impôs, Luís matou Walter, fez nascer Benjamin e Benjamim criou "Auto Rádio". Disco maior. Incontornável punhado de canções para uma geração, haverá de se dizer quando a poeira assentar. Para a geração de Luís Nunes, claro, que ainda não chegou aos 30, e para todas as outras que enfrentam em 2015 um país com tiques de 1965.


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Não é por acaso que em "Auto Rádio" (Pataca Discos, 2015) se ouve "Rosie", música de AP Braga, escrita em 1973 a meias com Fausto Bordallo Dia e letra de Reinaldo Ferreira e tudo soa encaixado, perfeito. Como se tivesse estado 42 anos à espera. Benjamim faz o Luís feliz. É óbvio. Agora toda a gente o percebe e ele percebe-se.

No final do electrizante e apinhado concerto de apresentação do disco na galeria Zé dos Bois, em Lisboa, Benjamim e banda (com a magnífica participação especial da cantora Selma Uamusse) abriram garrafas de champanhe, lançaram confettis e balões, e reforçaram o tom festivo com que estas canções nos atiram à cara preocupações genuínas e reflexões pertinentes. Mas antes do início do electrizante e apinhado concerto da ZDB também ouve AP Braga em palco, e todos voltámos a um tempo que não vivemos. Um tempo em que era preciso alertar consciências e lutar…e isso muitas das vezes era feito com música, com poesia, com criadores.

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Para lá da festa pop há muito para ouvir em Benjamim. A VICE conversou com ele horas antes de se apresentar ao vivo num comício de campanha de um partido político, em pleno Largo do Intendente, em Lisboa. Entre cervejas e cigarros falámos de digressões de 6000 quilómetros, canções, eleições e do Estado da Nação.

Frame do videoclip de "Os teus passos".

VICE: No Verão andaste "a queimar gasóleo" pelo país com a tour Auto Rádio, 33 concertos em 33 dias, e deste rodagem a um disco que já tinhas gravado, mas ainda ninguém conhecia. O teu objectivo era começar do zero a todos os níveis, uma vez que deixaste para trás as músicas em inglês e voltaste a Portugal depois de um período longo em que viveste em Londres?

Benjamim: Tinha vários objectivos, mas começar do zero nem era bem um objectivo, era mais uma inevitabilidade. Cheguei a Dezembro do ano passado e quando "mato" o Walter Benjamim vejo-me numa situação em que passo de um número razoável de seguidores do meu trabalho, que o apreciavam e reconheciam (e que fui conquistando ao longo dos anos), para zero (risos).

Tinha consciência que isso ia acontecer e pensei que era uma oportunidade para fazer as coisas de uma maneira diferente. Não queria fazer tudo como tinha feito até então, numa série de aspectos…para já porque o ritmo precisava de ser mais rápido…mas também porque tinha outro problema, não tinha disco, nem tinha a certeza de que disco iria ter…um gajo nunca tem muito a certeza, mas…

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Frame do videoclip de "Os teus passos".

De qualquer maneira, apesar de já não seres o Walter Benjamin, o Benjamim é a mesma pessoa e continuas a procurar, na minha opinião, aquela coisa da "canção perfeita"…

Sim, claro, eu escrevo canções e gosto da ideia do escritor de canções, mais do que a do gajo sempre com a guitarra e tal…gosto de explorar as guitarras, os teclados, as batidas, e de músicas com muitas vertentes. No entanto, a realidade é que não sabia o que tinha, não sabia o que ia acontecer, mas queria confrontar as pessoas e perceber o que tinha, só que não queria fazê-lo na cidade, com as mesmas pessoas que me dizem sempre as mesmas coisas…queria ver outras reacções, de quem não fazia a mínima ideia de quem era o Walter Benjamin. Chegar ali, cantar canções em português e aproveitar essa oportunidade de, pela primeira vez, poder ir a qualquer lado e as pessoas perceberem.

Não se trata de menorizar a crítica, nem nada desse género. Queria simplesmente sentir primeiro a reacção do público e, ainda mais importante, aprender a cantar estas canções. Essa possibilidade de ver e sentir as coisas ao vivo, de as ir moldando e sentindo de maneira diferente, deu-me um gozo incrível. Aliás, ontem estávamos a ensaiar para o concerto de apresentação na ZDB e até disse à banda 'agora é que estamos prontos para gravar o disco'. (risos)

Fazia sentido voltares a gravar o disco?

Não, mas isso era uma coisa que eu sabia que ia acontecer. Até porque foi uma grande luta fazer este disco. Gravar as vozes foi um suplício…(risos) e então toda a gente dizia que era melhor ir primeiro tocar ao vivo e só depois gravar, mas eu sabia que não tinha coragem de chegar a um palco sem ter gravado as canções, sem as ter ouvido e sem as ter treinado daquela maneira forma. Foi melhor assim…

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Depois entraste num processo bastante intenso em que assumiste o teu novo alter-ego, à frente de 33 públicos diferentes…

Claro. É muito engraçado se analisar isto pela métrica do Facebook, que vale o que vale, mas é a mais directa que hoje em dia temos: neste pouco tempo de Benjamim e depois desta digressão já atingi o mesmo número de fãs na página que aquele que tinha como Walter Benjamin, e que demorou anos a atingir…E isso deve-se, certamente, muito de ter estado um mês a tocar todos os dias.

Fotografia de Gonçalo Pôla.

Foi-te fácil tocar todos os dias de terra em terra?

Pá, nem sempre é fácil (risos), sai-te do corpo…mas valeu muito a pena.

Este tipo de digressões levam-nos um bocadinho para aquele imaginário dos cantores de música popular, que são quem, hoje em dia, ainda as faz com regularidade, e mais no Verão. Ou então para aquele tempo do chamado "boom do rock português", entre o pós-25 de Abril e a primeira metade dos anos 80, em que toda a gente se fazia à estrada em carrinhas e percorria o país de lés-a-lés, a tocar muitas vezes em condições deploráveis, segundo os relatos dos próprios, desde os Xutos, aos UHF, ao Rui Veloso…enfim, todos. Aquilo era quase uma missão. No teu caso sentiste-te mais missionário, ou mais pimba?

(risos) Isso que estás a focar é uma coisa muito importante, porque eu para isto inspirei-me muito nos americanos e inspirei-me muito nesses gajos todos. É claro que na América é uma questão relativa ao tamanho do território, em Portugal não. Em Portugal é uma questão de onde é que estão as festas. E as festas estão nas aldeias e nas vilas e nas cidades mais pequenas. Se há esse circuito porque é que nós, as bandas da música dita independente, não haveremos de estar lá. Não tenho preconceito nenhum. Se queres dar música às pessoas vais a qualquer lado.

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E como não tenho essa perspectiva de as minhas canções terem algum tipo de missão mais rebuscada, senti-me mais pimba. (risos)

Sem qualquer tipo de desprimor…

Nenhum, estou sempre a falar disto. Por exemplo, as Festas de Vizela para mim foram uma cena incrível. Augusto Canário no Palco Principal e nós no Palco Secundário, e mesmo assim houve uma data de gente que ficou para nos ver. Claro que era sobretudo malta mais nova, mas não só, e toda a gente dançou e curtiu…

Uma grande diferença, dos dias de hoje, em relação ao que os músicos encontravam nessas tours dos setentas e dos oitentas diz respeito às condições dos locais, não?

Sim sim, claro. Mas nós levávamos PA próprio. Porque, é diferente, claro, mas também apanhámos sítios onde não havia nada, tipo na Aldeia da Pedralva, onde chegámos, montámos e tocámos…

Fotografia de Gonçalo Pôla.

Este périplo pelo chamado "país real" teve de algum modo impacto no facto de teres de alguma maneira politizado o teu discurso em entrevistas recentes, e se calhar até na forma como apresentas algumas das canções de "Auto Rádio"?

Sempre tive um fascínio pela política. É quase um lugar comum dizer-se, nós todos somos políticos. Mas eu não quero ser um artista político, é mais uma questão de consciência, até porque não quero alienar o público que não partilhe as minhas ideias, nessa área. Não sou um político de partido, nem quero ser. Na minha banda há várias sensibilidades. Tenho grandes amigos de direita e é isso que para mim é interessante, o poderes debater as coisas. É, como te digo, uma questão de consciência. Um gajo pode ser de esquerda, ou de direita, e concordar em muitas coisas fundamentais. Até porque, o que me parece é que hoje em dia, no fundo a política acabou. É essa a minha teoria. E o que se passa na Grécia é o exemplo derradeiro disso. Como muita gente também previa, aquilo não deu em nada, porque eles não mandam nada, e aqui igual. Em Portugal ninguém manda nada.

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Ainda assim, aceitaste dar a cara e tocar as tuas canções num comício do Bloco de Esquerda, que, aliás, é uma coisa que praticamente deixou de existir nas campanhas eleitorais: músicos de relevo e respeitados a tocarem neste tipo de eventos. Uns faziam-no por convicção, outros porque eram pagos. Este modo de fazer política ainda faz sentido?

Faz sentido chegar às pessoas. Mas se me perguntas se tocava na festa do PSD, digo-te já que não. Nunca. Não é por desrespeito, simplesmente não me revejo no PSD e não vou estar a ser hipócrita. É uma questão de honestidade, inclusivamente para com as pessoas que me pagariam o cachet e para com as pessoas que iriam ver-me a tocar. Não posso estar a tocar com bandeiras de uma coisa na qual não acredito. Mas se me convidassem para jantar eu ia (risos).

Este ponto não é fácil. Porque pensei muito sobre isto de tocar numa acção do Bloco de Esquerda. Não é uma coisa que faça também de ânimo leve. Faço-o, no entanto, com uma justificação muito simples e que para mim chega: sou amigo da Mariana Mortágua - ela é de Alvito, terra onde eu vivo - mas não é só por conhecê-la há muitos anos, é porque acredito nela, acho que é uma verdadeira lufada de ar fresco neste país, mesmo na esquerda, e tem um papel muito importante a desempenhar no nosso futuro. Não posso deixar de dar-lhe todo o meu apoio.

Frame do videoclip de "Os teus passos".

Recentemente, dizias em entrevista ao Público, que este momento da nossa História te tinha feito perceber que esta geração precisa de canções. As do Sérgio Godinho, do Zeca Afonso, do Zé Mário Branco, já não são tão eficazes para as novas gerações? Tu tens canções para elas?

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Há o Godinho, há o Zeca…mas não nos esqueçamos que também temos o Fachada…quando disse isso não queria dizer que eram precisas canções, porque elas não existem. Elas existem, tem é de haver mais gajos a fazê-las, e com mais pontos de vista. Eu como músico também tenho essa função…

Consegues incluir uma canção como "O Exílio", em que dizes: "Lisboa, eu não consigo acordar sem ti / o exílio teima em não parar / eu sei que é mais do mesmo / é só mesmo mais um século a passar / mas nós que para aqui andamos só temos estes dias para te olhar / e Abril está a acabar", nesse rol de canções que podem falar a uma geração?

Acho que sim. Tenho a certeza que há muita gente que se reverá nela, porque muitos portugueses jovens estão na situação em que eu estive, que não é propriamente estares exilado em França porque há uma ditadura aqui, mas é o teres estudado e teres feito tudo para singrares na vida e não poderes voltar para Portugal, pura e simplesmente, por razões económicas. E isso também é duro.

Há quem diga que só é duro porque é uma geração burguesa que está a perder o que achava que era um direito adquirido, esse de ser burguês…

Pá, acho que tens direito à tua terra. Uma geração burguesa…conheço pessoas de várias origens, umas com mais facilidades outras com menos e todas elas fizeram um percurso para virem a ser úteis. Tu não tens culpa de seres rico ou de seres pobre…por acaso pensei muito nisto quando voltei para Portugal, porque sou uma pessoa que, felizmente, tive muitas facilidades, apesar da minha família não ser rica, nem pouco mais ou menos, mas eu podia voltar para Portugal, porque, em último caso, tinha a família. É aquela cena do 'tás sempre safo'. Mas ao mesmo tempo começas a pensar, e se em vez de Portugal, tivesses de voltar para a Palestina? Por muito mal que um gajo esteja cá, há sempre pessoas que estão pior que tu…

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Sentias que eras realmente um emigrante em Londres?

Se calhar senti mais no final, quando comecei a pensar em voltar e toda a gente, família, amigos, me dizia 'não voltes!', 'o que é que vens para cá fazer?', 'não há trabalho'. Não é que fosse muito bem pago em Inglaterra, mas tinha um contrato e a coisa era mais ou menos estável…não juntei dinheiro… depois lia as notícias de cá, e estando fora ainda é pior… aí senti-me emigrante, sim.

Foi ainda lá que começaste a escrever as canções em português?

Sim, nessa última fase. Depois precisei mesmo de vir para cá. Às tantas pensei que se ia fazer isto tinha mesmo de voltar para Portugal, reorganizar a minha vida, começar tudo de novo…mas tinha de estar aqui, precisava de falar com as pessoas, de falar em português com as pessoas, de sentir…

E agora, vais voltar a levar o disco para estrada, ou tens mais discos na manga?

Agora vamos tocar e espero poder dar cada vez mais concertos com banda, porque é um formato mais interessante. Depois tenho mais discos que quero fazer, claro…editar um por ano seria bom…vamos ver (risos).

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