Música

Aquele dia em que as baladas de São Paulo ignoraram o Salve Geral

Há dez anos, São Paulo parou. Pânico na Zona Sul. Pânico em SP. Caos mental geral. Na noite de 12 de maio de 2006, sexta-feira, a maior organização criminosa da história do Brasil, o PCC, pôs em prática um ataque simultâneo a dezenas de alvos pela cidade e motins por cadeias em todo o estado. 59 agentes policiais foram mortos. A retaliação veio com força total, de farda ou capuz, e, nos dias seguintes, centenas de civis morreram por arma de fogo. Este bangue-bangue urbano moderno virou São Paulo do avesso, e, guardadas as devidas proporções, deixou uma marca profunda na psiquê coletiva da cidade, à lá 11 de setembro. Aproveitamos a ocasião de uma década dos Crimes de Maio para relembrar, com uma série de matérias em todos os nossos sites, a fatídica semana, um trauma social que até hoje tem imensa influência na sociedade paulista, das favelas ao Jardins, passando pelo Palácio dos Bandeirantes.

São Paulo não parou de dançar na semana dos ataques do PCC, que se iniciaram numa sexta, em 12 de maio de 2006. Ao menos nos primeiros dias, quando nada afetou nem a programação da maioria das casas noturnas mais fervidas da época nem a sua média de público. Em lugares como a Lov.e, por exemplo, segundo a DJ e então organizadora da festa Technova Eliana Iwasa, “não aconteceu nada. Nenhum esquema de segurança especial nem ataques. Acho que o problema estava mais com os ônibus, presídios…”. De fato. Tanto que a organização do Skol Beats daquele ano, que rolou no sábado, dia 13, tendo o Prodigy como atração principal, nem pensou em cancelar ou adiar a data.

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Clubbers e ravers surpreenderam a mídia ao comparecer em peso no evento. Mais de 60 mil pessoas abarrotaram o Complexo do Anhembi, a tenda do DJ Marky contou com uma de suas melhores edições, e Renato Cohen tocou até as seis da manhã, encerrando uma maratona de 16 horas de som. Alguns DJs chegaram a se manifestar em relação aos ataques. O jeito que o DJ Marlboro encontrou foi soltar na agulha o “Rap da Felicidade”, no começo e no final do set. Quando terminou, ele disse ao microfone: “Os MCs Cidinho e Doca cantaram isso há dez anos. Muitas vezes as vozes das favelas são a premonição do futuro”.

No palco principal do Skol Beats, o DJ Patife pediu um minuto de silêncio em memória aos mortos nos ataques. “Eu estava prestes a entrar no palco principal com a banda que me acompanharia num live quando, de repente, chegou meu empresário e um dos produtores dizendo que estava rolando uma chacina na cidade e que já haviam matado diversos PMs. Segundo eles, a coisa era feia. Então me pediram para subir no palco e tranquilizar as pessoas, dizendo que o evento estava seguro e que teríamos um ótimo festival”, descreve o infante do drum’n’bass nacional. “Enquanto falava, me veio a ideia de pedir um minuto de silêncio e, para a minha surpresa, aquela imensidão de gente parou, silenciou e, com a mão no peito, ficamos todos em silêncio no sambódromo. Foi uma sensação e tanto!”.

No D-edge, programação normal e fila até as 10h da manhã. Foto: Divulgação.

Mas foi só isso. De resto, o fim de semana fluiu intenso para os baladeiros. O DJ Luiz Pareto, que atuava como residente da Freak Chic, no D-Edge, no período, diz que não teve que cancelar nenhuma festa por conta de qualquer coisa relacionada ao PCC. “A única coisa que lembro é que chegaram a metralhar o posto policial perto de casa, na Vila Sônia.” O Márcio Techjun, da festa Mothership, teve uma de suas noites mais agitadas no sábado dos ataques. “Eu toquei no Skol Beats nesse dia, na mesma pista que o Sven Vath, na tenda The End. Depois, nós o levamos pro D-Edge, e ele tocou por oito horas seguidas”, relembra. “Ou seja, tudo normal, D-Edge lotado com fila até as dez da manhã, todos felizes e ninguém preocupado com nada. Lembro de tudo nessa noite. Ninguém estava preocupado com isso.”

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Dos clubes que chegaram a ficar de portas fechadas, entre os que apuramos, estão apenas o Matrix Bar, na Vila Madalena, e a Fun House, na região da Consolação. Mas, neste último, a diretoria só cancelou a programação após o primeiro fim de semana de ataques, na segunda-feira fatídica do dia 16 de maio de 2006, que ficou conhecida como o dia que São Paulo parou. Quem conta é o host da época, o Rick Levy. “Nossa, eu lembro exatamente dessa noite: ia ter uma festa de aniversário. A casa ia abrir só pra isso, mas a festa foi cancelada. Na sexta anterior, dia 13, foi o meu aniversário, e eu lembro que encheu muito. Eu acho que foi, inclusive, a data que mais encheu na história da Fun House. Mas os dias dos ataques foda mesmo, que fizeram a casa se preocupar, foram segunda e terça.” O Francisco Mitkus, organizador da noite Revolution, que rolava às sextas, atesta o clima de calmaria na festa. “O maior estresse não foi à noite, mas no fim do expediente. As pessoas saíram mais cedo do trabalho e eu demorei duas horas e quarenta minutos pra chegar em casa. Acho que quem trampava com bar é que ficou mais preocupado, pelo fato de funcionar com área aberta.”

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É impressionante sacar nos relatos que a cultura do medo, talvez mais hegemônica hoje do que há dez anos, não impediu que a maioria dos clubes tivesse recorde de público naquela semana. Exceto o Mini Club, que abriu com festa do DJ Click, recém-saído do Atari Club, fechado em fevereiro. “Lembro que, no mesmo dia em que o PCC divulgou o início dos ataques, entrou uma única pessoa no clube, e nem foi pagante. Entrou VIP”, recorda-se. “Se não me engano foi uma Orgástica. Não tenho certeza.”

Alôca abriu normalmente, de terça à domingo. Foto: Divulgação.

Nem o Milo Garage, do Alexandre de Meo (“Teve festa normal, mesmo”), nem o DJ Club e nem Alôca passaram por isso. O que mostra que a falta de público do Mini Club pouco tinha a ver com o fato de as pessoas estarem reclusas em casa. “Trabalhamos sempre com cinco seguranças”, orgulha-se Igor Calmona, sócio-proprietário do DJ Club e do Madame (antigo Madame Satã). Na nossa região, o bairro dos Jardins, os estabelecimentos do entorno também funcionaram normalmente, sem nenhuma movimentação diferente. Nos 16 anos do DJ Club, nós nunca fechamos.” O DJ e promoter André Pomba, d’Alôca, revelou que a casa abriu de terça a domingo sem nenhuma queda de público e que, em suas palavras, o lugar “parecia um bunker de resistência ao toque de recolher não assumido.” Mas isso não significa que o pessoal estava desencanado: “Houve, sim, reforço na segurança interna, de olheiros na rua, e a própria Polícia Militar da região passou um telefone direto, para o caso de alguma ocorrência suspeita.” O Pomba acredita que o paulistano não deixa de se divertir por causa de nada, apenas busca contornar as situações. “Olha eu tenho uma visão muito pessoal, de que mesmo com o que estava ocorrendo, as pessoas, de alguma forma, se sentiam protegidas dentro de uma casa noturna”.

A trinca de clubes que começou com a retomada do Baixo Augusta, por sua vez, formada pelo Inferno, o Outs e o Vegas, também passou ilesa, mas com alguma baixa de público, vide os depoimentos de seus respectivos donos. O Joe Klenner, do Inferno, inclusive circulou incauto pela madrugada, já que na primeira noite dos ataques ele tocou com o projeto Trash Balladeers em outro pico, o CB Bar. “A gente nem se deu conta do que estava rolando. Fui tocar lá no CB e depois ficamos sabendo que estavam tacando fogo nos ônibus e matando policiais”, conta. “Fiquei preocupado com a insegurança, mas a gente abriu normalmente. Só que o público diminuiu, sim.” Para o Valentin Van Der Meer, do Outs, “a casa não pode fechar. Geralmente é no fim de semana que o público é mais forte. Não lembro o que era, mas tinha show”. E as noites de shows transcorreram intactas por lá, mesmo depois que chegaram aos ouvidos do Valentim algumas ocorrências. “Eu sei que mataram um cara do lado do Outs, em frente ao banco Bradesco”, disse.

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O movimento no Vegas seguiu ileso, a foto da fila pra entrar comprova. Foto: Divulgação.

Hoje à frente do Grupo Vegas, na semana dos ataques o Facundo Guerra capitaneava somente o clube Vegas. Ele se lembra que nos primeiros cinco dias dos ataques as festas aconteceram normalmente no estabelecimento, com número normal de pagantes. Só na metade da semana seguinte é que ele notou uma mudança no quadro. “Não sei dizer por que, mas apesar do alerta, não existia um clima de preocupação. Acho que as pessoas só começaram a botar fé que se tratava de algo sério passados alguns dias. Quando começaram a aparecer os números, imagens de ônibus pegando fogo”, avalia. “Então, no fim de semana subsequente aos primeiros ataques é que o público diminuiu mesmo, a partir da quarta-feira seguinte. A casa continuou abrindo, mas começou a baixar muito o movimento.”

Nos primeiros dias de ataque naquele maio de 2006, shopping centers foram fechados, trabalhadores dispensados mais cedo e blitzes armadas em avenidas e rodovias causaram sérios engarrafamentos na capital. Mas com o foco aparentemente dirigido a postos policiais, delegacias, bancos e ônibus, além de rebeliões em unidades carcerárias, os adeptos da curtição notívaga demonstraram, a princípio, um sentimento geral de despreocupação. Os números divulgados no final da tarde da segunda (16) daquele ano, porém, assustou até o mais incauto dos baladeiros: em três dias, foram registrados 180 ataques com 81 mortes. Naquele começo de semana, no entanto, ninguém saiu de casa.

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