“A primeira vez que usei leite num vídeo foi porque achei que parecia sêmen, achei que seria engraçado”, diz Natalie Wynn, mais conhecida como a youtuber norte-americana ContraPoints. Ela está rindo, olhando para o celular enquanto dissipa o mito do Reddit de que ela usa leite nos vídeos para reclamá-lo da alt-right, que costuma usar a bebida como um símbolo da supremacia branca. “Há uma semiótica complexa no leite”, ela admite, “mas por que derramo leite no meu rosto? Eu estava pensando na ligação entre poder e sexo? Não sei, provavelmente só achei engraçado mesmo!”.
Essas teorias elaboradas não são incomuns quando se trata do trabalho de Wynn, e são uma prova da atenção intensa que as pessoas prestam nos vídeos dela. Combinando humor, drag e filosofia, ela é uma das ensaístas mais incisivas e convincentes do YouTube. Seu vídeo “Gender Critical” (um termo que as feministas radicais usam como reação ao serem chamadas de TERFs) teve quase meio milhão de visualizações num dia. Do contexto da comédia até memes transfóbicos, ContraPoints está fazendo que parecia impossível: debates políticos cheios de nuance e controversos que são sexy e envolventes. Seus vídeos costumam ter legendas em muitas línguas, inclusive português.
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Wynn trabalhou em seus vídeos no YouTube por mais de uma década antes de chegar nessa fórmula. No começo, ela era “uma participante menor do conteúdo ateísta do YouTube, porque era isso que você fazia enquanto uma pessoa com opiniões em 2008”. Mas em 2016 ela começou o ContraPoints: uma resposta à atmosfera que ela viu se formando online. “Notei um aumento de conteúdo político depois do GamerGate em 2014, e era formado principalmente pela direita – ou, pelo menos, pessoas antiprogressistas”, ela me conta, citando um espectro de conteúdo que variava de centrista até abertamente neonazista. Ela decidiu criar seus próprios vídeos, e essas primeiras tentativas de desconstruir questões de justiça social através das lentes de esquerda logo pegou. Mais importante, se tornaram um meio criativo.
Até aquele ponto Wynn, que agora tem 30 anos, tinha devotado boa parte de sua vida à academia. Ela nasceu e cresceu na Virgínia, e mais tarde mudou para Illinois, onde fez PhD em Filosofia na Universidade Northwestern. “A ideia de ser uma acadêmica pro resto da vida começou a me entediar até o ponto do desespero existencial”, ela lembra, brincando só em parte – é difícil ter certeza: mais tarde ela descreve seu PhD como um “passeio guiado pelos homossexuais mais chatos da história”.
Ela descreve se sentir péssima, lidando com vários empregos para “financiar tentativas artísticas fracassadas”. Foi quando ela notou o pseudointelectualismo que estava começando a entrar no discurso da direita, impulsionado principalmente por “filósofos fajutos como Stefan Molyneux”, cuja popularidade provava que havia um público para discussões filosóficas de questões políticas. “Eles estavam vendendo isso para pessoas que desejavam esse tipo de comentário, mas estavam entrando numa versão horrível disso”, ela diz. ContraPoints foi concebido para equilibrar o campo de jogo político dissecando questões através de lentes de esquerda. “Se tem uma coisa que aprendi estudando filosofia”, ela acrescenta, “é que se você está escrevendo um trabalho sobre Aristóteles, primeiro você tem que mostrar que o entende. Depois pode fazer seu contra-argumento”.
Raça era um foco-chave dos primeiros vídeos do ContraPoints. Por causa de um relacionamento, Wynn se mudou para Baltimore depois de largar a universidade. Ela encontrou uma cidade no meio de “um levante” depois do assassinato de Freddie Gray – um jovem negro preso erroneamente que morreu por ferimentos sob custódia da polícia. Nenhum policial foi acusado. Logo ela começou a ver comentários “racistas violentos e maldosos” na internet que estavam sendo ignorados, um fato que a frustrava. “Achei que se as pessoas estavam escrevendo esses comentários, elas estavam pensando nisso o tempo todo”, ela diz. “Me disseram que eu estava louca, mas aí a eleição norte-americana de 2016 confirmou pra mim que as pessoas estavam votando do mesmo jeito que deixavam comentários no YouTube.”
Radicalização online se tornou outro tema importante dos vídeos do ContraPoints. Seus ensaios sobre “descriptografar a alt-right” e incels tiveram milhões de visualizações, assim como o vídeo onde ela expunha as falsidades de comentaristas importantes da alt-right como Ben Shapiro e Jordan Peterson.
“Eles pegavam essas reações racistas cansadas e fora da moda e as apresentavam como uma coisa nova radical, e essa é uma retórica poderosa”, ela diz. “Eles entendem como tornar essas ideias sexy e vesti-las para consumo do público; o que me deixa louca é que a esquerda não parece ter essa intuição de como apresentar publicamente um pensamento.” O impacto fatal dessa retórica da alt-right foi despida pelo massacre na mesquita de Christchurch. “As pessoas acham que são apenas memes, só piadas”, ela diz, a voz pesada com frustração. Num tuíte postado logo depois da tragédia ela escreveu: “Sem satisfação agora, só raiva. Ninguém ouviu”.
Wynn reconhece que para desradicalizar alguém você tem que conhecer as ideias da pessoa, mas esse método não é exatamente popular. “O único jeito como eu podia fazer esses vídeos era tendo conversas com centristas, ou com pessoas que estavam indo para uma direção da alt-right”, ela explica, “eu estava fazendo o que você literalmente não deveria fazer, que é falar com eles”.
Essa abordagem é enraizada num entendimento de que “política é estética” – em outras palavras, o jeito como você argumenta é tão importante quanto o argumento em si. “Não é só sobre expôr alguém e usar lógica”, ela explica, “porque há razões emocionais e psicológicas para as pessoas terem essas convicções políticas. De um ponto de vista psicológico, você tem que entrar com empatia no mundo da pessoa, não só por que ela pensa o que pensa, mas por que elas sentem o que sentem? Repita isso de volta para elas e você pode realmente ganhar tração”.
Como estratégia de persuasão isso pode ser eficaz, mas ela descreve receber um “coice” da esquerda no passado “por ter qualquer interação pública com a direita”. Agora ela faz um esforço deliberado para não ter contato interpessoal publicamente com eles – “os observo secretamente e depois relato sobre eles na forma muito controlada do vídeo”.
Alguns tópicos são mais pessoais que outros. Wynn fez a transição enquanto sua carreira no YouTube decolava, e ela mergulha fundo em assuntos como “feminismo crítico de gênero” (agora sinônimo de “transfobia”), o que exige muito trabalho emocional. “Eu não entendia como seria difícil fazer a transição em público, e vendo os vídeos de antes da transição – é meio humilhante e doloroso”, ela explica. “Em algum momento vou ter que ficar em paz com isso, mas não estou agora.”
Nesse ponto, a ascensão da popularidade do canal ContraPoints não acontece sem um tanto de ansiedade. É difícil não politizar a autonomia que ela tem sobre seu conteúdo e sua imagem num mundo que muitas vezes vê a comunidade trans através de lentes voyeurísticas. “Eu posso decidir quanto maquiagem uso e qual a iluminação, o que é importante porque há essa política incrivelmente complicada cercando a aparência física das pessoas trans”, ela explica. Compreensivelmente, Wynn está muito consciente de que permitir a entrada da mídia em sua vida exige não só um sacrifício de controle, mas uma grande quantidade de confiança.
Ela também descreve a transição como “o último prego no caixão” de suas esperanças de se tornar uma debatedora pública. “Para ser boa nisso você tem que ser confiante, assertiva, quase um pouco agressiva. Numa mulher trans essas qualidades sempre serão lidas como masculinas, então para vencer um debate, você tem que perder o debate.”
Comentários assim parecem não combinar com sua persona cortante, sexy e aparentemente destemida online. “É complicado”, ela diz sobre as expectativas que colocamos nas celebridades do YouTube (apesar de rir quando insinuo que ela se encaixa no padrão) para nos permitir acesso sem filtros à vida deles. “Eu não diria que sou um pouco impessoal – minha principal persona é uma versão idealizada de mim mesma”, ela diz. “É assim que eu queria argumentar pessoalmente! Na verdade sou muito tímida e não gosto de confronto.”
Isso não quer dizer que ela visa ser uma inspiração. “Você precisa colocar um pouco da escuridão, da vergonha e de baixa auto-estima lá – é uma questão de ter o suficiente de mim na mistura, do que estou sentindo, ser autêntica.”
O YouTube depende da ilusão de uma conexão genuína com os criadores que gostamos. “Ele permite que você sinta que conhece essa pessoa na tela, e isso é importante para pessoas trans em particular porque não há muitos de nós. Como uma figura trans proeminente, você espera que alguém sinta que te conhece e pense em você na vida real; você espera ter um impacto no jeito como a pessoa age quando encontrar uma pessoa trans na vida real.” Mas com essa falta de visibilidade vem uma pressão para representar perfeitamente uma comunidade inteira. “Muitas pessoas trans colocam esperança em mim como um tipo de defensora pública”, ela diz, “então se as desaponto é como um tapa na cara. Já fui acusada de transfobia no passado; as pessoas acham que posso traí-las a qualquer momento”.
Ela descreve uma reação negativa em particular cercando “The Aesthetic” – um vídeo de diálogo (onde Wyn interpreta as duas personagens) entre Justine, uma mulher trans hiperfeminina, e Tabby, a “militante radical”. Wynn queria “explorar ideias sem necessariamente endossá-las”, elas recebeu reações negativas por deixar suas opiniões sobre assimilação e estética claras. “As pessoas não gostam de ambiguidade”, ela diz, “então na minha ausência dando minha opinião, elas sentiram que tinham direito de especular e achar o pior”.
Ironicamente, o vídeo – de que Wynn reitera que se orgulha – na verdade serve como um metacomentário sobre as pressões colocadas sobre as mulheres trans, que são aumentadas por mulheres trans públicas. “Não estou reclamando nenhum tipo de opressão. Quero deixar claro que sou uma das que teve sorte”, ela diz. “Mas não acho que as outras pessoas recebem o escrutínio intenso que recebo por todos os lados. Sinto que muitas das críticas que recebi pelo vídeo eram injustas.”
Wynn não diz falar por toda a comunidade; suas visões são inevitavelmente moldadas por suas experiências, e enquanto seu perfil cresce, ela reconhece que as experiências dela vão se tornar “menos fáceis de se identificar” para uma grande porção de pessoas. “Ainda assim, não sou a única tentando mudar representações negativas de pessoas trans – há muitos criadores trans por aí”, ela diz.
Incidentalmente, essa é a mensagem principal do vídeo “The Aesthetic”. “Acho que não tem como ganhar”, as duas personagens finalmente concordam, exasperadas, “você quer relaxar e só assistir vídeos no YouTube?”.
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