Cuidado. Parece perigoso. “Por que fazer isso com você mesma?”
Quer dizer, eu esperava essas reações da minha mãe – pra quem eu não ia contar que estava fazendo isso de jeito nenhum – mas fiquei chocada de ouvir essas coisas de amigos próximos e colegas quando anunciei que comeria 800 calorias ou menos nos sete dias seguintes. Eu sabia que tinha uma boa razão para querer fazer a dieta restritiva do tipo que Allison Mack e outras membros da irmandade secreta que marcava mulheres NXIVM seguiam, mas não conseguia articular isso facilmente para pessoas que se importavam comigo.
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Quando encontrei pela primeira vez a ex-membro Sarah Edmondson, ela descreveu a dieta extremamente restritiva que as mulheres do círculo interno da NXIVM faziam como um suposto jeito de construir o caráter e aprender disciplina. Tabloides chamaram isso de uma forma perversa de controle da mente, mas de dentro parecia apenas uma maneira poderosa de viver um tipo de ética de forma medível. As mulheres tinham que registrar tudo que comiam, e passar de 800 calorias rendia punição. Ninguém dos círculos da NXIVM parecia chamar isso pelo que realmente era: um regime de fome.
Acho que mulheres com inseguranças normais com o corpo têm uma facilidade em aceitar que negar algo a si mesmas é uma amostra de força. Qualquer tipo de corpo que você tenha, ele provavelmente pode ser melhorado por mais exercícios e menos carboidratos, certo? A NXIVM levava isso ao extremo lógico, muito abaixo das 2000 calorias recomendadas diariamente por especialistas. Limitar o consumo de alimento mostrava que você não se deixa influenciar pelos impulsos básicos do corpo – que nem a fome tinha poder sobre você.
Eu queria entender essa mentalidade como alguém que nunca tinha contado calorias ou tido uma balança na vida. Por natureza, evito pessoas com tendências de se negar algo, em vez disso optando por companhia mais indulgente. As seguidoras da NXIVM eram contra indulgência (exceto talvez o líder preso do grupo Keith Raniere, que notoriamente adorava uma pizza, sem falar em suas preferências sexuais). Em Albany, Clare Bronfman pagava um chef vegetariano de um clube chamado Apropos, onde o cardápio era uma encarnação dos ensinamentos de restrição de Keith. Para as mulheres que comiam ali, era fácil manter suas refeições abaixo das 200 calorias.
Quando comecei a pesquisar sobre a dieta, eu não tinha a menor ideia do que isso pode fazer com uma pessoa. As seguidoras comiam muitos vegetais e nada de carne, o que descreve os hábitos alimentares de muita gente. Mas a matemática de ficar abaixo das 800 calorias por dia significava cortar a maioria dos carboidratos, gorduras e laticínios, e ingerir muito menos proteína do que o recomendado. Imaginei que não me sentiria bem, mas estava um pouco cética com as alegações de controle de mente. Como comida era um campo de batalha central da ideologia NXIVM, eu intuitivamente sabia que não poderia escapar de sofrer esse tipo de “sacrifício” em primeira mão.
Comecei contando as calorias das minhas refeições na preparação. Admito que fiquei nervosa vendo as cervejas, pizzas e nachos recebendo valores numéricos. Mas optei por cortar arroz e pão, e comecei a me sentir “recompensada” atingindo as metas diárias. No almoço, fui pela primeira vez ao restaurante paleo da frente do meu escritório, e li informações nutricionais extremamente detalhadas do cardápio deles. Eu nunca tinha me aventurado com esse tipo de comida saudável que usa imitações obviamente insatisfatórias. Decidi que mesmo numa dieta de fome, eu não ia comer um maldito “rolinho de linhaça”.
Na manhã do meu primeiro dia com 800 calorias, só com café no meu sistema, liguei para uma nutricionista que me deu sua avaliação sincera: “Eu nunca recomendaria para alguém seguir algo tão pouco calórico”, me disse Ali Eberhardt, uma nutricionista que trabalha com programas de transtornos alimentares do governo desde 2011. “Me parece algo muito prejudicial e preocupante.” Como se fosse uma deixa, meu estômago começou a roncar. Eu tinha pepino e feijões-verdes prontos para o lanche, mas eles estava muito longe, na bancada da minha cozinha, e eu não queria interromper nossa entrevista.
Eberhardt me disse que 800 calorias por dia era um nível baixo o suficiente par desencadear meu mecanismo de sobrevivência básica. “Quando alguém restringe seu consumo de carboidratos, isso basicamente restringe sua glucose, e glucose é o único combustível para o cérebro”, ela disse. Levaria ainda algumas horas para eu sentir tipo uma névoa mental, mas eu disse a mim mesma que estava preparada para operar a menos de 100%. Coisas como funções hormonais, estabilização do humor e função cognitiva geral estariam “sub-reguladas” se eu continuasse me privando de nutrientes. Eberhardt disse que isso acontece para o corpo se focar nas funções absolutamente necessárias – sabe, como manter o coração batendo.
Meditei sobre isso enquanto colocava meu primeiro almoço aprovado pela NXIVM no forno – meia abóbora na forma de espaguete que eu comeria com molho de zero calorias. Uma ex-colega de apartamento de Allison Mack me disse que espaguete de abóbora era o jeito favorito de Mack de se sentir cheia – um legume de baixa caloria disfarçado de massa. Aparentemente, ela comeu tanto disso que as palmas das mãos dela ficaram laranjas (provavelmente uma condição chamada carotenemia, causada por excesso de betacaroteno no sangue, segundo Eberhardt).
Tentei bater pepino, espinafre, limão e gengibre com gelo para fazer um “smoothie” de café da manhã, mais logo abandonei isso em favor de meia batata-doce assada. Fiz salada de tomate e alcachofra, sopa de tomate e pepino, e alcachofra refogada com cogumelos e abobrinha. Para o jantar, eu assava repolho com cenoura, feijão-verde e couve-flor. Comi todas as variedades de abóbora porque elas realmente dão uma sensação de saciedade, e literalmente comi chucrute direto do pote depois de ler que tinha poucas calorias. Eu também contava dez nozes como lanchinho diário.
Eu tentava manter o café da manhã entre 80 e 120 calorias, o almoço entre 100 e 250, e o jantar abaixo de 300. Às vezes eu não precisava almoçar porque tinha comido sem perceber um monte de cenoura e pepino durante o dia (achei fisicamente impossível comer mais de 80 calorias de cada um por vez). Se eu conseguia magicamente chegar até 13h com menos de 200 calorias, eu me refestelava com um pedaço de pão de abobrinha com gotas de chocolate (feito com farinha de coco naquele restaurante paleo) à tarde.
Eu não gostava de mencionar meu experimento em público porque sabia que isso rendia comentários preocupados imediatamente. No segundo dia, comecei a notar a dieta afetando meu humor – estourei com um colega por acrescentar um erro de digitação numa das minhas matérias e reclamei de uma mensagem às 6 da manhã que me acordou. Mas por dentro, tenho admitir que estava sentindo uma sensação virtuosa, quase de iluminação. Talvez eu só estivesse interpretando a névoa mental como um momento zen, mas achei que tinha algum tipo de posse secreta de mim mesma que tantas pessoas desejam – que eu era capaz de fazer qualquer coisa.
Foi só no terceiro dia que comecei a sofrer com o isolamento social causado pela dieta da NXIVM. Uma amiga de Toronto estava na cidade por alguns dias, e nossa turma de amigos estava planejando se encontrar para tomar uns drinques. Fora o problema óbvio das calorias do álcool, os superiores da NXIVM era abstêmicos hardcore. Os novos membros descobriam isso do jeito difícil quando levavam vinho para os jantares na casa da presidente Nancy Salzman. Meu substituto em casa para cerveja era La Croix de grapefruit (zero calorias!) e um pega do meu vape de maconha. Por mais satisfatória que essa prática fosse, eu sabia que não ia me divertir muito num pub.
Com a capacidade de resolução de problemas do meu cérebro comprometida, dei um bolo sem nem avisar. Me senti muito mal com isso. Eu podia ter pelo menos mentido e dito que fiquei presa no trabalho! Fiquei com vergonha de aparecer e explicar minhas escolhas (água e salada num pub???) para pessoas que entenderiam essa notícia de maneiras diferentes.
Em casa, comecei a pensar como jovens atrizes talentosas e com amigos importantes podiam se desconectar de sua comunidade de maneira sutil e bizarra. Sei que a comunidade de atores deve aceitar melhor dietas extremas que a maioria, mas Allison tinha uma ética e uma filosofia pessoais também. De que ela nunca conseguia parar de falar, aliás. Deve ser desconfortável quando pessoas ao seu redor não compartilham seu entusiasmo pelas coisas com que você está empolgada – pior ainda se elas fazem cara de preocupação quando você menciona isso.
Uma amiga com quem me senti mais confortável compartilhando meu experimento se ofereceu para fazer a dieta NXIVM por um dia em solidariedade. Trocamos receitas de gaspacho e tacos de abobrinha, e reclamamos por mensagens de celular. “Acho que uma das razões para a seita ter essa dieta é porque as mulheres criavam um laço falando sobre calorias porque a) não conseguiam pensar em mais nada e b) só conseguiam falar entre si durante esse pesadelo?”, ela me escreveu. “Em outras notícias, meu jantar teve apenas 229 calorias.”
Apesar dela estar brincando um pouco, tinha alguma verdade nessa questão. Enquanto o mundo exterior me fazia sentir julgada, ela e eu conseguíamos rir sobre nosso sofrimento juntas. No dia seguinte, falamos sobre quão desafiador seria acreditar sinceramente numa dieta extrema, e ter seus amigos e parentes tentando te fazer desistir disso. “Me senti muito virtuosa ontem e também como se você fosse a única pessoa com quem eu podia falar sobre me sentir virtuosa”, disse minha amiga, que já tinha voltado a temperar tudo com muito azeite de oliva.
Enquanto minha dieta (cada vez mais irritante) chegava no quarto dia, meus pensamentos estavam espiralando em todas as direções. Num momento eu estava pensando na camaradagem entre membros de culto que passam pelos mesmos desafios, no outro eu estava preocupada com os avisos mais perturbadores de Eberhardt – que a longo prazo meu cabelo ia começar a cair, minha menstruação podia parar e meus órgãos podiam acabar prejudicados permanentemente. Eu não me sentia com tanta fome fisicamente como achei que sentiria, mas por outro lado, era muito fácil cair em fantasias sobre brownies e batata frita do McDonald’s. Achei que talvez isso fosse uma coisa natural para mim, ou talvez eu estivesse morrendo por dentro sem saber.
Ao mesmo tempo, eu não percebia mais a “névoa mental” do primeiro dia. Provavelmente ela ainda estava lá, achei, mas eu não conseguia mais lembrar a sensação de pensar claramente para comparar. Aqui é onde alguém pode ficar trancado num espaço mental estranho e desesperado – caindo num hábito cada vez mais restritivo ou tropeçando numa gangorra de indulgência/expurgo. “As pessoas podem não ser necessariamente capazes de tomar decisões racionais”, me disse Eberhardt. “Essa é uma das partes que torna transtornos alimentares tão difíceis para os familiares – eles veem alguém que amam ter a saúde impactada e ser incapaz de fazer mudanças que podem parecer tão simples.”
No quinto dia, eu tinha desenvolvido hábitos de racionamento. Se gostava do sabor de alguma coisa que fazia, eu tentava guardar metade ou mais para a próxima refeição. Eu gostava de saber que tinha opções extras no futuro. Eu estava cansada de comer pepino e cenoura porque não conseguia pensar em mais nada.
Quando perguntei a Eberhardt se ela achava que a dieta podia ser uma ferramenta para controle da mente, ela fui surpreendentemente receptiva com a ideia. “Há mesmo impactos cognitivos para alguém restringindo calorias”, ela disse. “Quando meus pacientes conseguem melhorar seu consumo nutricional, eles geralmente dizem ‘Eu sentia como se estivesse andando numa névoa – eu não percebia isso até agora, onde estou num momento de clareza e posso ver que me sentia muito desassociada da pessoa que eu era’ – porque estavam basicamente num lugar de sobrevivência.”
Eu sabia que a irmandade secreta dentro da NXIVM não achava que estava num “lugar de sobrevivência” – era o oposto, essas mulheres achavam que estavam alcançando seus sonhos. Perto do fim do meu experimento, decidi experimentar algumas calças jeans velhas que estavam muito pequenas para mim. Elas entraram sem problema, apesar do botão ainda estar apertando. Olhei minha bunda no espelho, sentindo uma onda de endorfinas no meu cérebro – ou será que era só tontura por estar em pé? Não tenho certeza.
Nesse ponto, meus membros começaram a parecer mais pesados que o normal. Pedalei minha bicicleta para o trabalho mais devagar e esperava um segundo a mais para acrescentar algo nas conversas. Como teste, encontrei alguns amigos num notório bar de karaokê de Vancouver, e enquanto passava pela tortura de ouvir gente bêbada gritando músicas da Sheryl Crow e Kid Rock num microfone, eu não me sentia fora de lugar no meu estado vacilante e atrasado. Só tive que recusar um drinque uma vez.
Meu último dia foi o menos confortável e mais obsessivo. Eu não conseguia parar de pensar no que poderia comer quando o relógio zerasse. Eu queria muito voltar para a sociedade normal, e não ter mais que explicar porque eu estava tomando tanto chá de hortelã e quase caindo da minha cadeira. Comecei a planejar um lanche da meia-noite e as refeições dos dias seguintes na minha cabeça.
Apesar de ser apenas por sete dias, comer assim me deu um gostinho da identidade da NXIVM. Refeições sem dúvida moldam nossa sociedade, e com quem comemos se torna naturalmente nossa comunidade e sistema de apoio. Quando você escolhe uma dieta tão fora do normal que você não quer que sua própria família veja, essa é uma distância que só cresce com o tempo e o desconforto. É fácil para alguém que se acha superior moralmente ignorar avisos e se cercar de outras pessoas que concordam com ela.
Acho que fiquei mais sugestionável, mal humorada ou sensível? Com certeza, e acho que as mulheres que comiam assim também ficaram. Achei muito difícil me concentrar em qualquer coisa por mais de uma hora antes do meu cérebro voltar a pensar em comida. Mas acho que foi o significado e a crença que eles aceitaram que levou essas pessoas a se isolarem do mundo. Porque nenhuma quantidade de informação nutricional pode argumentar com seu senso de justiça.
Sarah Berman é editora sênior da VICE Canadá e está trabalhando num livro sobre o caso de tráfico sexual da NXIVM com a Penguin Canada.
Matéria originalmente publicada pela VICE Canadá.
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