No dia 30 de maio, um advogado da Carolina do Norte chamado T. Greg Doucette começou uma thread no Twitter documentando más condutas da polícia filmadas nos protestos por George Floyd em todo o país. Na tarde de 6 de junho, a thread tinha mais de 347 vídeos.
Individualmente, cada vídeo é um terrível abuso de poder documentado para o mundo todo ver. Juntos, a thread é uma exibição de algo mais significativo. Cada um desses policiais provavelmente sabia que suas ações estavam sendo registradas. E fizeram essas coisas horríveis mesmo assim; espancamentos aleatórios, gás lacrimogêneo e balas de borracha sendo disparados contra manifestantes pacíficos e a imprensa. Eles fizeram essas coisas porque não tinham razão para acreditar que, mesmo com vídeos, eles enfrentariam qualquer consequência.
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E não foi um erro de julgamento da parte deles. Não só porque eles são policiais nos EUA, mas porque são cidadãos de um país que desistiu completamente de punir algumas pessoas – especialmente brancos, homens, ricos e poderosos – por fazer algo que não deveriam, enquanto simultaneamente puni outros – especialmente pessoas não-brancas pobres – por pequenas infrações inventadas; George Floyd, por exemplo, foi executado em público porque pode ou não ter usado uma nota falsa de $20. Vivemos numa sociedade onde forças estruturais pensadas para punir os poderosos que fazem coisas erradas desmoronaram. Mau comportamento aparentemente é recompensado com tanta frequência quanto é punido.
Quando pessoas sonegam impostos, violam leis trabalhistas para ter vantagens competitivas, usam informações sigilosas do governo para vender ações, ignoram alertas de segurança de engenheiros para apressar o lançamento de um produto, beijam uma subordinada à força, ou brutalizam pessoas em nome da segurança pública, tudo continua acontecendo sem interrupção porque elas estão agindo dentro do sistema que fizemos, não apesar dele.
A polícia ganhou seu lugar no ponto focal desse movimento porque são o exemplo mais claro disso. A polícia matou mais de 5 mil pessoas em incidentes com arma de fogo desde 2015, segundo o Washington Post, numa taxa consistente de mil por ano (em comparação, cerca de 50 policiais são mortos por ano). Negros são baleados e mortos pela polícia numa taxa desproporcionalmente alta.
E estamos falando apenas de incidentes fatais com armas de fogo. Uma investigação da VICE News de 2017 descobriu que, de 2010 até 2016, tivemos 2.730 incidentes não-fatais com arma de fogo nos 50 maiores departamentos de polícia do país, quase o dobro do número de incidentes fatais. Cerca de 20% das vítimas estavam desarmadas. “Policiais dificilmente são formalmente acusados de um crime ou sequer repreendidos por esses incidentes”, a VICE News descobriu, “em vez disso, muitos dos feridos acabaram encarando acusações – alguns até foram presos enquanto se recuperavam de seus ferimentos”.
Na verdade, o sistema de justiça é explicitamente pensado para agir como um escudo para revoltas legais, protegendo a polícia das consequências de suas ações. Mais proeminentemente, imunidade qualificada, como o The Appeal explicou ano passado, “protege as forças da lei, em particular, por inúmeras violações da constituição todo ano”. The Appeal continuou destacando vários casos onde a polícia agiu com brutalidade e de modo desumano, e mesmo assim não sofreu consequências por causa da imunidade qualificada, como “arrastar uma mulher grávida de sete meses que não apresentava ameaça pela rua e usar um taser nela três vezes por se recusar a assinar um documento”.
Alguns estados vão além, evitando que o público sequer fique sabendo de más condutas policiais, com o propósito explícito de que os policiais não sejam punidos. Em 2018, o BuzzFeed News publicou documentos disciplinares secretos do Departamento de Polícia de Nova York, mostrando que policiais rotineiramente só recebem um tapinha na mão ou mesmo nenhuma punição por brutalizar membros do público. Essas crueldades foram mantidas em segredo por causa de uma lei estadual conhecida como 50-A, que impede a divulgação desses registros (ela também se aplica a bombeiros e carcereiros). A investigação do BuzzFeed News descobriu que “pelo menos 319 funcionários do NYPD cometeram ofensas graves suficientes para reder demissão, mas puderam manter seus empregos”.
Enquanto essas questões merecem mesmo a fúria do público, esse é apenas um lado da moeda em se tratando do papel das autoridades na nossa sociedade sem consequências. Afinal de contas, a polícia deve encontrar e prender outras pessoas por violar a lei. Infelizmente, ela geralmente não faz isso.
Pelos $114,5 bilhões gastos em policiamento por anos nos EUA, há 40% de chance de um assassino não ser preso. Quando uma pessoa negra é assassinada, há menos de 50% de chance da polícia fazer uma prisão pelo crime. E quando uma pessoa negra é morta num bairro com alta taxa de assassinatos, há menos 10% de chance da polícia prender alguém.
A polícia é pior ainda para prender pessoas por outros crimes como estupro (34,5% de taxa de prisões) e roubo (29,7%) segundo uma base de dados do FBI. Menos de 15% de assaltos a casas e roubos de carros resultam em prisões. Isso significa não só que criminosos ficam livres, mas que essas taxas nunca resultam em nenhuma consequência para as forças policiais que não estão fazendo seu trabalho, exceto dar ainda mais dinheiro a elas.
Quando a polícia realmente faz uma prisão e os oficiais são chamados para testemunhar no tribunal, eles às vezes mentem ou manipulam evidência para fazer seu caso parecer melhor – um crime em si – e não sofrem consequências mesmo quando são pegos mentindo. A prática vem desde 1994, quando uma comissão indicada pelo prefeito de Nova York David Dinkins para investigar corrupção policial descobriu que “perjúrio talvez seja a forma de má conduta policial mais comum do sistema de justiça criminal”. É algo tão comum, na verdade, que o NYPD tem até seu próprio termo pra isso: “testementir”. Você pode não acreditar, mas depois de todos esses anos, nada mudou.
Enquanto as autoridades locais são um dos significantes mais fortes da nossa sociedade sem consequência, elas não estão sozinhas. No nível federal, os investigadores são totalmente desinteressados por crimes de colarinho branco. Vivemos numa “era de ouro para crimes de colarinho branco”, como Michael Hobbes detalhou para o HuffPost no começo do ano. “O sistema de justiça criminal desistiu até de fingir que os crimes dos ricos merecem ser levados a sérios”, Hobbes escreveu. “Em janeiro de 2019, processos por crimes de colarinho branco caíram para o nível mais baixo desde que pesquisadores começaram a rastreá-los em 1998… Em 2018, um ano em que quase 19 mil pessoas foram sentenciadas em tribunais federais apenas por crimes relacionados a drogas, procuradores condenaram apenas 37 criminosos corporativos que trabalhavam em empresas com mais de 50 funcionários”.
Além disso, há boas chances do seu empregador estar te roubando. “Roubo de salário não é um crime a que muitos procuradores e políticos se referem quando falam sobre ‘pegar pesado contra o crime’, mas representa uma grande porção de todo o roubo cometido nos EUA”, a GQ informou ano passado. Segundo o Economic Policy Institute, uma think tank que cobre regularmente roubo de salário, em 2017, 2,4 milhões de pessoas perderam juntas $8 bilhões em renda graças a roubo de salário por seus empregadores. E isso só em 10 estados. Como a GQ apontou, se esse é o padrão em todos os outros estados, isso significa que o roubo de salário nos EUA representa muito mais dinheiro roubado que todos os outros roubos de propriedade juntos.
Mesmo o contrato social básico de pagar seus impostos parece não se aplicar aos ricos e grandes companhias. O 0,5% no topo da renda subnotificam sistematicamente quanto ganham e rotineiramente desviam os esforços do IRS para fazê-los pagar o que a lei exige, uma investigação da ProPublica de 2019 descobriu, custando ao tesouro americano dezenas de bilhões de dólares todo ano. Você e eu pagamos mais imposto de renda federal todo ano que a Amazon, que pagou zero dólares em 2018. E a Amazon dificilmente está sozinha entre as corporações gigantes roubando do público.
Não só crimes e más condutas corporativas óbvias ficam impunes, mas as pessoas responsáveis às vezes até são recompensadas por eles no final das contas. Para dar apenas alguns exemplos: Dennis Mullenburg, o CEO da Boeing que supervisionou o desenvolvimento de um modelo avião que caiu duas vezes e matou 346 pessoas por uma falha catastrófica de software, foi demitido com um paraquedas de ouro de $80 milhões. O cara que comandava a Wells Fargo durante a época que a empresa conduziu uma enorme fraude sistêmica ganhou $130 milhões quando foi dispensado. Adam Neumann, o fundador da WeWork que transformou um negócio modesto de subdivisão de espaço de trabalho num castelo de cartas de $47 bilhões que depois desmoronou, ganhou um ótimo pacote de saída de $1,7 bilhão. Para outros exemplos, é só procurar “golden parachute” na aba de notícias do Google.
E tem as companhias que não dirão ou farão nada desde que isso sirva a seus resultados, não importa quão perigoso seja para a sociedade. Os perpetradores da crise financeira de 2008 saíram ilesos. Empresas petroleiras que sabiam sobre o papel dos gases-estufa nas mudanças climáticas financiaram por décadas campanhas para mentir para o público sobre isso. Redes sociais que ajudam e incentivam a propagação de fake news e teorias da conspiração perigosas evitam toda a responsabilidade, alegando ser plataformas sem jurisdição sobre como as pessoas usam seus produtos. Bancos voltaram a fazer os empréstimos subprime, mas agora com carros em vez de casas.
Ninguém personifica melhor a existência sem consequência que o homem atualmente na Casa Branca. A vida inteira de Donald Trump é baseada na premissa de que ninguém nunca vai fazê-lo pagar por nada que ele faz. E todos os seus 73 anos neste planeta reforçam essa premissa.
Não importa quantos empreendimentos de Trump vão à falência, quantas vezes ele diga algo moralmente repugnante, ou seus erros catastróficos sobre questões que tornam a vida das pessoas pior, ele sempre ganha mais riqueza, fama e poder. Sua campanha de 2016 foi uma tour de force de ações sem consequências. Na época, o sentimento era, esse vai ser o ato inaceitável com que ele vai ter que lidar, incluindo dezenas de acusações de abuso sexual e Trump ter sido gravado dizendo coisas como agarrar mulheres “pela boceta”. Ele ridicularizou heróis de guerra e vive elogiando pessoas autoritárias. Mas ele passou ileso por cada escândalo, porque um insight da sociedade americana moderna que Trump entende melhor que ninguém é que vivemos num mundo pós-consequências. Ele trilhou esse caminho até o Salão Oval. E quando chegou lá, continuou fazendo o que sempre fez, mesmos quando isso violava seu juramento de presidente, porque ninguém vai fazê-lo encarar as consequências.
Depois da eleição dele, a revolta contra um país sem consequências começou logo depois de sua posse com o movimento Me Too. Uma das ações mais comuns sem consequências na nossa sociedade é assédio sexual, e as revelações sobre as ações passadas de Trump, só pra ver ele entrar na Casa Branca, foram simplesmente demais. Inúmeras mulheres contaram suas próprias histórias de assédio e má conduta sexual em virtualmente toda indústria, resultando num acerto de contas da estrutura de poder patriarcal com que ainda estamos lidando hoje. O movimento foi – e continua sendo – uma exigência de que os homens sejam responsabilizados pelo jeito nojento como tratam as mulheres. E o Me Too culminou com Harvey Weinstein, um dos homens mais poderoso de Hollywood e portanto do país, sendo condenado por estupro e sentenciado a 23 anos de cadeia.
E também já houve progresso inimaginável nas poucas semanas dos protestos por George Floyd. No domingo, o conselho municipal de Minneapolis, onde Floyd viveu e morreu, anunciou que tinha uma maioria à prova de veto para dissolver o Departamento de Polícia de Minneapolis, uma vitória surreal para os esforços para reforma policial que seria impensável apenas algumas semanas atrás.
Ainda assim, a estrada para o progresso é difícil. Enquanto Weinstein aguardava o julgamento, Brett Kavanaugh, um homem acusado de assédio sexual, foi confirmado como juiz da Suprema Corte. No fronte da justiça criminal, Minneapolis é apenas uma cidade no país inteiro que precisa repensar sistematicamente como abordamos o conceito de consequências, para que os ricos e poderosos encarem alguma e que os pobres não sejam multados e criminalizados até a miséria total.
Enquanto isso, os vídeos virais de brutalidade policial continuam surgindo. Desde que escrevi a introdução desta matéria cerca de 48 horas atrás, Doucette tinha catalogado mais 57 vídeos. Agora, ele tem mais de 404. Mas pela primeira vez em anos, parece que os vídeos podem resultar em algo mais do que ultraje no vácuo. Afinal de contas, não é mais o vácuo se todo mundo está aqui.
Pela primeira vez em anos, há razão para acreditar que as coisas estão finalmente mudando, que as pessoas que fazem o mal podem realmente encarar consequências. As pessoas que assistem esses vídeos há anos cansaram. E isso é um começo.
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