Há dez anos, São Paulo parou. Pânico na Zona Sul. Pânico em SP. Caos mental geral. Na noite de 12 de maio de 2006, sexta-feira, a maior organização criminosa da história do Brasil, o PCC, pôs em prática um ataque simultâneo a dezenas de alvos pela cidade e motins por cadeias em todo o estado. 59 agentes policiais foram mortos. A retaliação veio com força total, de farda ou capuz, e, nos dias seguintes, centenas de civis morreram por arma de fogo. Este bangue-bangue urbano moderno virou São Paulo do avesso, e, guardadas as devidas proporções, deixou uma marca profunda na psiquê coletiva da cidade, à lá 11 de setembro. Aproveitamos a ocasião de uma década dos Crimes de Maiopara relembrar, com uma série de matérias em todos os nossos sites, a fatídica semana, um trauma social que até hoje tem imensa influência na sociedade paulista, das favelas ao Jardins, passando pelo Palácio dos Bandeirantes.
Nas grandes redações paulistanas, em maio de 2006, as escutas policiais entraram em frenesi na madrugada do dia 12. A comunicação entre os homens da lei era facilmente interceptada e as pautas da noite eram ditadas pelos códigos que vinham da voz abafada e metálica.
Videos by VICE
Começava naquele momento a jornada de três fotógrafos que presenciariam ataques tão incomuns pelos próximos dias. “Na primeira madrugada ninguém sabia o que estava acontecendo. Não tinham um nome, nada. Sabíamos apenas que os policiais estavam morrendo”, relata André Porto, fotojornalista veterano e calejado de trabalhar nas madrugadas violentas de São Paulo.
A primeira pauta de Porto foi colar em uma boate na zona sul onde havia acontecido o assassinato de um policial. O tempo de deslocamento até lá custou as imagens. Os cordões de isolamento já montados não liberavam um bom ângulo para o fotógrafo.
No meio dos curiosos encostou um motoboy e disse: “Vixe, hoje tá feio. Acabei de passar na Ponte dos Remédios e mataram um policial lá também”. Confiante de que a informação era real, entrou no carro do jornal, que zuncou até a ponte onde seriam feitas as primeiras imagens dos ataques contra a polícia.
No meio da via escura, tudo tinha marcas de bala. O único lampejo de vida no local era um policial sozinho guardando a cena do crime. Tudo era muito recente. “Eu fiz as fotos com a ajuda de uma lanterna. Três minutos fotografando e começou a chegar um monte de policial. Eles só olharam pra mim e já foi o suficiente para eu sair de lá”, descreve Porto, quando perguntado sobre as fotos que foram parar na capa da Folha de S.Paulo em 13 de maio de 2006.
O dia seguinte amanheceu na mesma intensidade da madrugada anterior. Bem cedinho, lá no fundão da zona Sul, o café da manhã do fotojornalista Apu Gomes foi mais amargo. “Eu vi uma foto do André Porto no jornal, um boné da polícia todo furado e pensei: caraio, o baguio tá louco!” Tão famoso por sua semelhança com o personagem dos Simpsons quanto respeitado pelo seu trabalho como fotógrafo, o ex-motoboy sabe bem como rodar pelas ruas da metrópole. Em cima da motoca e com a câmera no pescoço começou a história do Apu em meio aos ataques.
Policial chora a morte de um parceiro durante ataques do PCC. Foto: Apu Gomes
A primeira foto foi no local de mais um assassinato. “Eu registrei a cena e fui para a delegacia. Vi um policial chorando. O parceiro dele tinha morrido naquela viatura”, detalha. “Era complicado fazer fotos de policiais. Eles não queriam que o vizinho visse a foto no jornal e descobrisse que ele é policial. Ninguém sabia quem estava matando. A polícia te via com a câmera na mão e já vinha pra cima.”
Do outro lado da cidade, estava Filipe Araujo. Fotógrafo de berço, filho de uma das lendas da fotografia nacional –Jorge Araújo – e linha de frente das notícias mais intensas do jornal O Estado de São Paulo, ele acompanhava um grupo de mais de 50 policiais civis que se reuniram para partir em busca de criminosos membros do PCC. “Antes dos ataques, nossa referencia de crime organizado era o que víamos no Rio de Janeiro. Me surpreendia, na época, a organização do PCC”, relata Filipe.
André Porto, que nesse momento já andava pelas ruas sem os logos característicos de carro de jornal, relembra: “Percebemos que a coisa era feia, que estavam matando todo mundo e tiramos os logos do carro”. E assim ele continuava sua caça aos fantasmas do PCC. Às vezes, a dica era só um coquetel molotov na delegacia e ele ia atrás. A informação inicial o levava para outras – madrugadas e madrugadas foram varadas. “Em um certo momento a polícia parou de ser atacada e começou a ter muita morte na periferia. Era muito difícil chegar nessas informações. A polícia ficou mais calada.”
A cidade acordou com notícias de ônibus em chamas e presídios rebelados. Era tudo ao mesmo tempo e muito rápido o vilão dessa história ficou famoso: o Primeiro Comando da Capital literalmente parou São Paulo. “Sabe aquela música do Raul? O dia em que a terra parou, foi isso”, brinca Filipe Araujo, que acordou com um boato de atentado com bombas no Aeroporto de Congonhas e foi pra lá de helicóptero. Sim, o fotojornalismo já teve seus tempos dourados. “Aproveitei o voo para também registrar os ônibus trancados no pátio.” Com medo dos constantes ataques aos veículos, as empresas de transporte recolheram os ônibus das ruas, aumentando consideravelmente o caos.
Da janela de casa, no Capão Redondo, Apu Gomes viu uma nuvem de fumaça. “Mano, o que é aquilo?”, pensou. “Saí de moto e, pertinho, tinha um ônibus queimando na estrada do Alvarenga. Foi tudo ao mesmo tempo: fogo, rebelião, ataques. Fui pra rua e não sabia o que ia fazer. Colei no CDP Diadema e estava rebelado”, relembra. “Mas sabe como é? Fotógrafo quer ação. Às vezes eu chegava no lugar e a imagem não era boa. Eu fotografava e partia pra outra.”
Depois do pico dos primeiros dias seguiu-se uma guerra mais silenciosa. As chacinas eram muito difíceis de serem registradas, as informações muito mais escassas, relata André Porto. “Mesmo passando por tudo isso eu não vi nenhum cadaver, sempre que eu chegava no local o corpo já tinha sido removido. Eles sempre removiam tudo muito rápido.”
Durante o ano todo casos isolados relacionados aos ataques apareciam de vez em quando.
É muito louco como funciona a mente dos fotógrafos em meio a tudo isso – o trabalho, a concentração, as horas checando informações e pensando nas imagens retiram da mente a possibilidade de sentir medo – ou ao menos te deixam em um estado de alerta que muitas vezes prega peças na mente, uma espécie de transe.
Em uma das noites, André estava no Capão Redondo e ouviu uns barulhos que pareciam tiro. Preocupado, ele chamou o motorista e perguntou: “É tiro? É tiro?”. Ambos concordaram que sim. “Saímos correndo no carro no maior gás”, relembra. “Quando viramos a esquina, vimos que o som era só um cara bêbado batendo em uma porta de ferro com um chinelo. Rimos pra cacete.”