Foto por Yuri Barichvich
Nas últimas quinta e sexta-feira a cobra comeu e o pau fumou no Espírito Santo. De centenas a milhares de alunos protestaram durante esses três dias pela diminuição das tarifas do transporte público do Estado. É claro que nem o governo e nem a polícia acharam legal, então o que aconteceu foi o seguinte:
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PARTE I – PEDRAS NA JANELA DO GOVERNADOR
Foto por Bruno Coelho
O caos começou logo cedo na manhã de quinta-feira (02/06) em Vitória, capital do sempre esquecido Espírito Santo. Umas 7h30, cerca de 100 estudantes tacaram fogo em vários pneus em frente ao Palácio Anchieta, onde o governador Renato Casagrande senta a bunda pra oficialmente comandar o Estado, e fecharam sem dó duas das principais avenidas da cidade — a Getúlio Vargas e Jerônimo Monteiro –, que correm paralelas.
Foto por Anizio Suela
Uma pá de gente disse que foi pega de surpresa, uma mentira das piores. Dois meses antes, vários diretórios estudantis pregaram uma porrada de cartazes em paradas de ônibus de todas as cidades da região Metropolitana de Vitória. Quando os cartazes não eram colados, muros eram pichados. Tá certo que a frase presente no comunicado era meio pretensiosa — “Dia 02/06 – se a passagem não baixar, Vitória vai parar” — e ainda por cima fez uso de rimas, mas o aviso tava lá pra quem quisesse ver. Somando-se a essa comunicação à moda antiga, vários estudantes entraram em ônibus de diversas linhas para pedir apoio. Em suma, parecia coisa de amador que tava com o rabo quente depois de ver o circo pegar fogo nos protestos do Oriente Médio.
Mas os amadores passaram a mensagem direito. Vitória é uma cidade pequena e dependente de quatro avenidas extremamente movimentadas. Se elas forem bloqueadas, o trânsito não fica lento, ele literalmente para! E foi isso que os estudantes fizeram: bloquearam duas avenidas paralelas, em um horário extremamente complicado.
Foto por Yuri Barichvich
Somente com esse protesto, três cidades da Região Metropolitana de Vitória praticamente pararam, total ou parcialmente, com engarrafamentos de mais de 10 km — um absurdo do grande para os padrões capixabas — e passageiros que saíam dos ônibus e andavam a pé em uma das pontes que ligam os outros municípios a ilha de Vitória.
Foto por Anizio Suela
O motivo de tudo isso é o maior mobilizador de protestos no Estado: alto preço da passagem (R$ 2,30 no sistema intermunicipal), ônibus lotados e monopólio no setor de transporte. Mas acima de tudo, os estudantes — principalmente universitários da Federal do Espírito Santo — queriam passe livre para todos os alunos. No momento, somente estudantes do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes, antiga Escola Técnica) e do ensino médio da rede pública têm direito a gratuidade, num total de 23 mil cabeças, o que é encarado como dois pesos e duas medidas pelos movimentos estudantis. O governo do Estado rebate, e afirma que já subsidia a passagem, e se não fossem por essas verbas, o preço seria de R$ 2,60.
Não foi a primeira vez que rolaram protestos tão fodidos em Vitória. Em 2005, após um segundo aumento de passagens no mesmo ano, um movimento ainda maior se espalhou pela cidade e o resultado foi uma semana de zona por toda a capital, inclusive com sangramento dos bolsos dos empresários que controlam a maior ponte que liga as duas principais cidades do Estado, e por lei não poderiam mais cobrar pedágio. Ao fim, os manifestantes conseguiram com que o governo reduzisse o valor das cobranças em 20 centavos.
Foto por Yuri Barichvich
Por volta das 13h40 os milicos que acompanhavam os protestos de longe se posicionaram para “restabelecer a ordem”, logo depois que uma comissão estudantil entrou no Palácio Anchieta pra negociar com o vice-governador Givaldo Vieira. Por milicos entenda sete viaturas do Batalhão de Missões Especiais, uma espécie de Bope capixaba, e dois carros do Corpo de Bombeiros, prontos pra um inferno. A tática dos policiais não diferiu da polícia da época da ditadura… Ou da paulista durante a última Marcha da Maconha: bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha, e muita, muita cacetada.
As maiores vítimas não foram os manifestantes, mas sim alunos de uma escola pública próxima ao Porto de Vitória, que não conseguiram fugir depois que o gás da polícia invadiu o prédio. Pelo menos cinco alunos foram parar num posto de atendimento médico para tomar soro e algumas drogas não reveladas.
Foto por Yuri Barichvich
Um grupo até tentou resistir, ao cobrir os olhos e narinas e atirar pedras na Tropa de Choque, mas os confrontos não duraram mais de cinco minutos. Com os ataques policiais, os manifestantes se dispersaram. Alguns tentaram se refugiar em uma banca de revistas em meio à fumaceira, outros entraram nas poucas lojas ainda abertas, e alguns que pretendiam mostrar que tinham culhões, subiram a escadaria do Palácio Anchieta, para logo depois arremessar uma saraivada de pedras nas janelas da fachada do palácio. Os “homi” miraram neles e despejaram balas de borracha até não querer mais, o que causou uma rápida dispersão no que tinha restado do movimento. Umas 14h30 o trânsito tava liberado depois de muita bala e gás, e o clima era “tranquilo”, após os bombeiros retirarem os restos de pneus queimados.
Foto por Anizio Suela
Caso encerrado? Não!
PARTE II – “BORA PRA UNIVERSIDADE, RAPÁ”
Foto por Izaias Buson
Eu chego ao local justamente na hora em que os estudantes se reagruparam, e por volta das 15h, novos protestos se formaram e pararam a Avenida Fernando Ferrari, em frente ao prédio da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Mas não eram só 100, o grupo agora já era de mais de mil, segundo a própria PM, que geralmente diminui bastante esse tipo de estatística. Como era de se esperar, o trânsito deu outro nó, e bem rápido!
Foto por Bruno Coelho
Uma hora e meia depois os incansáveis do BME — que provavelmente esperavam uma sexta-feira mais tranquila — apareceram e começaram a marcha. Mais uma vez, choveu balas de borracha e bombas de gás das armas dos mais de 100 policiais participantes da operação, num ritmo muito mais intenso do que nas horas anteriores. Os estudantes não se dispersaram, pois tinham um trunfo dessa vez: a própria Ufes. O terreno do prédio é uma área federal, o que claramente obriga a PM a ficar longe. Nós, com isso na cabeça, entramos no terreno e ficamos próximo à grade que separa o terreno da calçada.
A Tropa de Choque, frustrada com a fuga do alvo deles e completamente fora de controle, mira pra dentro da Ufes e atira diversas granadas de gás para dentro do território da universidade, e no processo acerta carros, alunos, funcionários e até o reitor em exercício, Armando Biondo Filho, que ficou bem puto com o lance.
Ainda não satisfeitos, os milicos mandam rajadas de spray de pimenta inclusive em pedestres e aposentados que passavam pela calçada. Antônio Guimarães, de 63 anos, foi um dos alvos, e contou, com os olhos ardendo, “que nunca tinha visto tamanha truculência da polícia nos mais de 40 anos em que mora em Vitória”. Os manifestantes, que observaram a truculência do interior da universidade, reagiram com pedras pra cima dos policiais, que tiveram que usar os escudos pra se proteger.
Foto por Izaias Buson
Mais uma vez, houve uma dispersão no movimento, e mais uma vez pareceu que os protestos haviam acabado. E mais uma vez, todos se enganaram. Quando os policiais bateram em retirada com sorrisinho de dever cumprido na cara, fechamos a pista novamente e iniciou-se uma passeata rumo a Praça de Pedágio da Terceira Ponte, a principal ligação entre a capital e a segunda cidade mais importante do Espírito Santo, Vila Velha.
Enquanto isso, no Twitter, os capixabas já sentiam orgulho de ver a hashtag #protestoemvitoria no novo medidor de popularidade mundial, os Trending Topics. No rastro disso, aquele cheiro de reportagem de abertura de Jornal Nacional figurava no ar. Mas, nem foi tão foda assim, já que a tag apareceu em segundo somente nos Trendings nacionais, ao lado de personas non gratas, como Justin Bieber, e Willian Bonner não gastou muitos minutos com a narração da grandiosidade dos protestos.
Foto por Izaias Buson
A passeata foi impedida de chegar à ponte. A polícia havia previsto a ação e bloqueou o local. Por volta das 19h, e de longe, os homens da lei lançaram mais bombas para impedir o avanço dos estudantes, que desgastados pelo dia inteiro de manifestações, seguiram para fechar uma avenida próxima. Nesse momento, me afasto um pouco do foco das ações, e observo os ativistas sentarem, realizarem uma assembleia pra decidir o que fariam da vida e decidissem voltar pra ponte, na espera de não encontrar mais os algozes do BME a postos e cumprirem o plano de abrir todas as cancelas da ponte.
Merda! Todo o BME estava lá, e com ainda mais vontade de gastar a munição disponível. Mais tiros, bombas, e dessa vez eles foram pra cima dos manifestantes, prenderam vários deles que acabavam por se dispersar na fuga. A coisa foi realmente intensa, com tiros nas costas de manifestantes em fuga e esqueminhas covardes de quatro policiais em cima de um único estudante para efetuar a prisão dele, várias vezes aplicando uma boa sova antes.
Foto por Izaias Buson
Fugindo por vielas ali próximas, o mais perto de liderança que esse movimento teve, anunciou mais uma marcha no dia seguinte, às 17h. O saldo louco da quinta foram 30 presos, vários quilômetros de engarrafamento, umas 4 mil balas de borracha disparadas, milhares e milhares de pares de olhos ardendo e a polícia liberando um pouco da sede de sangue dela. Ironicamente, boa parte dos que agitaram os braços o dia inteiro subiram nos ônibus disponíveis, pagaram meia passagem e rumaram pra casa. Tudo lindo!
Foto por Yuri Barichivich
À noite, um bando de grupos estudantis repudiou a violência policial… E a ação dos estudantes em si. A imprensa se amarrou e republicou em tudo quanto é canto que os manifestantes não tinham liderança e estavam divididos. Balela pura, os grupos que repudiaram os protestos — Grêmio Rui Barbosa, Grêmio Moacir Malacarne, e União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes) — eram justamente os grêmios que representam as classes de estudantes que já possuem a gratuidade da passagem – o que dispensa maiores explicações, portanto.
PARTE III – A NOITE DO ARREGO
Fotos por Felix Zanetti
Dia seguinte, gente pra caralho, ânimos um pouco mais no lugar e um clima mais ameno. O grupo se reuniu em frente a Ufes — obs: Universidade Federal = o centro das ideias mais malucas de todos os estados brasileiros. Fim! — no horário marcado. Umas 4 mil pessoas ao todo, com destino novamente sendo a praça do Pedágio, fazendo questão de demonstrar que insistência é um forte do movimento estudantil. No caminho, música para aliviar as cucas e um impressionante apoio dos motoristas, que muitas vezes acenavam de seus carros. Nos celulares dali, fotos das câmeras da ponte mostravam que o BME tava na área de novo, num total de 200 homens, sete viaturas e alguns cachorros babões e cretinamente intimidadores.
Foto por Izaias Buson
Foto por Flavinha Mendonça
Às 19h30, durante a marcha, uma surpresa: informes que o BME havia batido em retirada, e deixado a área livre para o protesto. Minutos depois, outra surpresa: a Rodosol – concessionária que administra a Terceira Ponte, e por lei não poderia cobrar mais pedágio porque já recebeu de volta os investimentos que fez – abriu ela mesma as cancelas da ponte.
Foto por Izaias Buson
Foi uma conquista, sem balas ou fumaça venenosa. Chegamos à ponte e formamos um corredor para os carros passarem. Alguns motoristas chegaram a descer dos carros e cumprimentar-nos, colocando abaixo aquela conversa fiada que todos eles odeiam passeatas. Alguém ainda arrumou disposição pra puxar o Hino Nacional, cantado por todos. A noite ainda teve espaço pro povo xingar a mídia mainstream com berros de “Hey Gazeta, vai tomar no cu!”.
Fotos por Izaias Buson
Com o clima tenso, a polícia logo formou uma escolta em volta do povo da Rede Gazeta, afiliada da Globo aqui no Espírito Santo. O motivo pra isso foi bem previsível: eles cobriram o movimento do ponto de vista policial e da forma mais escrota possível. Eram notas como: “Os estudantes atacaram os policiais com pedras”, “Os ativistas se refugiaram na Ufes e de lá assustam a população”, entre outras coisas absurdas.
Fotos por Yuri Barichivich e Izaias Buson
Mesmo com a força dos protestos, as autoridades ainda não recuaram. O secretário de Transportes do governo capixaba, Fábio Damasceno, bateu o pé pro preço da tarifa e garante que ele não cai, e ainda completa que o Espírito Santo é um dos estados que mais concede subsídios a passagem. Mais manifestações estão marcadas para a semana, e se a coisa tomar os rumos que se espera, o bicho vai pegar até quando o governo resolver arredar o pé e reconhecer as merdas que faz. Mas uma coisa é certa: muito estudante Geração iPhone ficou com a bunda piscando depois de ter seus momentos de Líbia, o que, no fim, é ótimo.
TEXTO POR FILIPE SIQUIERA