David Simon

Fotos por Philip Andrews



David Simon é o responsável por um dos maiores feitos narrativos do século passado, que é a sequência das cinco temporadas completas da série de televisão The Wire. Se isso parece uma hipérbole para você, é porque você ainda não assistiu ao seriado. É a rede mais intrincada de personagens, motivações, insight, ação, repercussão e emoção que já passou na televisão, e rivaliza os grandes romances do final do século XIX, quando os romances tinham, realmente, e constantemente, alcance. Mais hipérbole, mas é isso aí. Eu e a maioria dos fãs estamos para o The Wire assim como um cristão está para Cristo ou um viciado para a droga. É basicamente A PORRA DE UM DEUS. Hipérbole demais ali, talvez. Mas deu pra sacar a ideia, né?


Antes do The Wire, David Simon era um repórter no Baltimore Sun. Durante sua estada lá, ele escreveu dois livros meti-culosamente pesquisados e ricos em detalhes humanos sobre a sua cidade. Homicide: A Year on the Killing Streets (1991) foi o resultado de um ano acompanhando a polícia de homicídios de uma cidade onde assassinato parece ser a principal atividade profissional. The Corner: A Year in the Life of an Inner-City Neighborhood (1997, escrito em conjunto com Ed Burns) foi o resultado de um ano entre as famílias, viciados e traficantes de um dos mais famosos pontos de vendas de drogas de Baltimore. De Homicide saiu o programa Homicide: Life on the Street, que era legal e tal, melhor que a maioria dos seriados policiais, mas também era só um seriado policial. The Corner resultou em uma minissérie da HBO que é praticamente o antecedente direto do The Wire.

Depois de The Wire, Simon e Ed Burns, que é professor primário e ex-policial de Baltimore, adaptaram o livro Generation Kill de Evan Wright para uma minissérie da HBO. É o documento mais efetivo, ainda que produzido, da realidade diária dos fuzileiros navais na atual guerra com o Iraque.

E agora, enquanto digito isso, Simon está filmando sua nova série da HBO em Nova Orleans. Chama-se Tremé, e dizem que tem seu centro na vida de músicos locais. Mas tenho a impressão de que isso é a mesma coisa que dizer que The Wire tinha como centro o comércio de drogas de Baltimore. Claro, esse é o ponto de partida. Mas dada a obsessão de Simon com a cidade norte-americana e a diminuição do valor institucional da vida, acho que podemos afirmar que Tremé terá o mesmo alcance e impacto que The Wire. Em outras palavras, estou tão ansioso, que eu podia ser congelado criogenicamente até o dia da estreia da série.

Recentemente Simon conversou com a Vice do escritório de produção de Tremé em Nova Orleans. Sem dúvida, essa é de longe a maior entrevista que já publicamos, mas vamos combinar, é o cara que fez The Wire. A edição inteira poderia ter sido a respeito dele.

Vice: Eu não sei se as pessoas que marcaram essa entrevista te contaram, mas tivemos um encontro interessante ano passado. Eu estava entrando num show do The Pogues em Nova York…
David Simon:
 Um babaca furou a fila. É.

Exatamente. 
O cara com o Ministro da Doença. 

Ele mesmo. Eu estava do seu lado, bem na sua frente. Eu me dei conta que era você depois que percebi que um monte de desco-nhecidos estava indo até o cara atrás de mim e dizendo coisas do tipo “Obrigado” e “Eu adoro o seu trabalho”. Aí eu olhei pra trás e vi uma jaqueta da quinta temporada de Homicide: Life on the Street e foi tipo “Caralho. É o David Simon”. Daí um cara começa a furar a fila na frente da gente e você apavora o cara. Você perguntou se ele achava que era a Rainha da Inglaterra.
Bom, só não fura a fila, sabe? Eu encontrei com o cara depois. 

Sério? 
É, depois que eu peguei os ingressos passei por ele. Tanto eu quanto ele em tempo de assistir ao show. Aí é que está. Eu disse pra ele: “Valeu a pena?”. Ele só me fuzilou com o olhar. 

Parece que ele não estava entendendo. 
Daí mais tarde estávamos os dois no back-stage.

É mesmo? Quem era ele, um cara da gravadora ou algo assim? 
Não sei, mas o backstage estava lotado, e eu estava ali para falar um oi para as pessoas que eu conheço da banda. A última coisa que eu queria era brigar com ele. Então fiquei na minha. Tomei muito cuidado para não continuar com aquela discussão ali, mas, quando o encontrei antes do show, eu estava numas de “Eu entrei. Você entrou. As pessoas que estavam atrás de mim na fila entraram”. Odeio esse tipo de coisa. Fico meio constrangido com a merda que aconteceu ali, mas enfim. Acontece.

Eu adorei. Foi tipo, cara, ele realmente faz o que fala. Fiquei feliz. 
Não saí na porrada com o cara nem nada disso. Eu não ia dar o primeiro soco. Não seria correto. 

Bom, eu te defenderia. 
E iam acabar me expulsando de um show que eu tinha… 

Seria por um bom motivo. Certo. Sempre tive curiosidade em saber como uma temporada de The Wire era estruturada antes do início das gravações. Você pode esboçar, mesmo que de uma maneira bem simplificada, o processo de escrita do roteiro?
Tínhamos uma série de reuniões de planejamento. Primeiro, no começo de cada temporada, fazíamos um tipo de retiro com os principais escritores, os caras que fariam parte da equipe o ano inteiro. Discutíamos o que estávamos tentando contar, mas na verdade debatíamos sobre atualidades, ideologia e política. Nem todos os escritores pensavam da mesma maneira. Não estávamos afinados nas questões atuais como a guerra contra as drogas, educação pública ou a mídia. Então tínhamos que discutir as questões enquanto questões, primeiro. Sem pensar nos personagens, nem na trama. 

Muitas pessoas que escreveram para The Wire não vinham tradicionalmente da televisão.
Se tem uma coisa que diferencia The Wire de muitos dos seriados que você vê por aí, é que os escritores não vinham da televisão. Nenhum de nós cresceu querendo ir para Hollywood, ou pensando em escrever um programa de TV ou um filme. Ed [Burns] era tira, e depois professor primário. Tinham jornalistas na equipe de escritores, romancistas e dramaturgos, também. Todo mundo começou em lugares diferentes.

Provavelmente isso fez toda a diferença. 
Bom, não éramos céticos a respeito de terem nos dado 10, 12, 13 horas—seja o que for que dure uma temporada da HBO. Tudo aquilo era um presente maravilhoso. A narrativa de O Poderoso Chefão, incluindo o terceiro filme, tem… O quê? Nove horas?

É, umas nove horas. 
E olha o tanto de histórias que eles conseguiram contar. Nos davam mais do que isso para cada temporada. Então é melhor você ter algo para contar. Isso parece muito simples, mas na verdade é um tipo de conversa que não acho que aconteça na maioria dos seriados. Sem dúvida não acontece na TV norte-americana. Acho que muita gente acredita que nosso trabalho, enquanto roteiristas de TV, é transformar o programa em uma franquia e conseguir o máximo de audiência, e conservar isso. Então, se eles gostam de x, você dá x para eles. Se eles não gostam de y, não faça tanto y. 

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Certo. Entre as temporadas de muitos seriados de sucesso, são feitos ajustes claramente baseados em observações da rede de TV sobre o que foi percebido ser mais popular entre os telespectadores. 
Nunca pensamos nessa dinâmica. O que nos perguntávamos era “O que devemos falar em 12 horas de televisão?”. E isso é um impulso jornalístico. Isso vinha dos escritores de The Wire que eram jornalistas e, até certo ponto, dos romancistas que escreviam para o programa que escrevem em estruturas realistas, como ficção pesquisada. Gente como Pelecanos, Price e Lehane.

Esses três caras parecem ter a bagagem perfeita para trazer várias coisas valiosas para The Wire.
Não era como se tivéssemos colocando o Isaac Bashevis Singer na equipe. Eu adoro as coisas que ele faz, mas estávamos atrás de romancistas que estivessem fazendo ficção baseada em pesquisa, particularmente no meio ambiente urbano. Eu não confundo The Wire com jornalismo. Tenho muito respeito pelo jornalismo para fazer uma declaração dessas. Mas o estímulo, o estímulo inicial para fazer o programa? Era o mesmo de alguém que senta para escrever um editorial ou um op-ed.

Para fazer uma declaração ou soar um alarme. 
É: “Tá dando merda. É aqui que eu acho que tá dando errado. Isso é o que acho que pode funcionar”. Aquele estímulo na sala dos escritores de The Wire era o mesmo que existia no conselho editorial de um bom jornal.

“Bom” sendo a palavra em vigor aqui. Eu não quero reduzir The Wire a um grande tema, mas você diria que uma das maiores fundações do programa era a ideia de instituições versus pessoas? 
Sim, isso permeava tudo. Uma das coisas que estávamos dizendo era que a reforma estava se tornando mais e mais problemática, já que os interesses dos endinheirados—capitalismo, que é um uma espécie de último deus do Olimpo—ficaram mais entrincheirados no mundo pós-moderno. A reforma se torna mais e mais problemática porque o status quo é organizado de uma maneira a maximizar e exaltar o lucro—particularmente o lucro a curto prazo—em detrimento de benefícios sociais ou humanos de longo prazo. 

Que é meio que o problema clássico que aparece com o capitalismo e a industrialização. 
Mas eu não sou marxista. Sempre acham que sou marxista. 

Ah, não, eu não acharia. Penso em você como um ser, além de escritor, mais um crítico e um observador. 
Uma coisa é reconhecer o capitalismo pela ferramenta econômica poderosa que é, e admitir que, para o bem ou para o mal, estamos atados a ele e, graças a Deus, o temos. Não existem muitas outras coisas que podem produzir riqueza em massa com a destreza que o capitalismo consegue. Mas confundi-lo com uma estrutura social é uma corrupção intelectual enorme e é algo que o Ocidente tem aceitado como fato desde 1980—desde Reagan. Seres humanos—na América em particular—valem mais, ou menos. Quando o capitalismo triunfa inequivocamente, o trabalho é diminuído. É um jogo onde todo mundo perde. O povo pagava impostos muito mais altos quando Eisenhower era presidente, uma taxa de impostos muito mais alta para o benefício da sociedade, e todos nós tínhamos uma sensação maior de sermos incluídos. Mas não é sobre isso que você quer falar, eu sei. 

Bom, não, eu não quero falar sobre isso. Isso, tecnicamente, não é a respeito de escrever, mas é muito relevante para a sua escrita. 
Acho que o que quero dizer é que o tema geral era: “Nos doamos para esse deus olímpico que é o capitalismo e agora estamos colhendo tempestade. Essa é a América que o capitalismo sem limites construiu. É a América que merecemos porque nós deixamos isso acontecer. Não merecemos nada melhor. The Wire tentava tirar as vendas dos olhos das pessoas e dizer “Isso é o que você construiu. Dá uma olhada”. É um retrato preciso dos problemas inerentes às cidades norte-americanas.

Sem dúvida. 
E existem outras partes dessas cidades que são economicamente viáveis? Claro. Você pode subir a pirâmide que é o capitalismo e encontrar os bairros de classe média alta e as escolas particulares. Você consegue saber para onde o dinheiro foi. Mas The Wire divergia por sua escolha de se centralizar na outra América, a que ficou para trás. Esse era o tema principal e isso funcionou por cinco temporadas. Então é a instituição versus o indivíduo.

Parece que dissimular esses comentários sobre a sociedade norte-americana dentro de ficções pode ser a única maneira de conseguir com que várias pessoas se comprometam com problemas como pobreza, drogas e o desaparecimento da indústria. Você viu as mensagens de The Wire repercutirem para os espectadores além do nível do entretenimento?
Não. Eu acho que algumas pessoas entenderam e talvez ajam de outra forma da próxima vez que um político de merda apareça dizendo que com um pouco mais de base empresarial, mais tiras e mais advogados, consigamos vencer a guerra contra as drogas. Talvez haja mais divergências em relação aos pontos onde batemos mais forte. Mas não acredito que um programa de televisão, ou mesmo os esforços sistêmicos do jornalismo, consiga mudar essa dinâmica. Nem mesmo um jornalismo muito bom, o que existe cada vez menos. 

Por que a reforma parece tão impossível? 
Vivemos em uma oligarquia. O dinheiro é o motor da política norte-americana, e a razão pela qual eles não podem reformar o financiamento, a razão pela qual nós não podemos ter financiamento público das eleições ao invés de doações privadas, a razão da K Street ser a K Street em Washington é para garantir que nenhum sentimento popular sobreviva. Você está presenciando isso agora com a saúde pública, com a marginalização de qualquer esforço para incorporar racionalmente todos os norte-americanos em uma bandeira nacional que diga, “Estamos juntos nessa”. 

Mas daí os críticos de um sistema como esse imediatamente gritam “socialismo”. 
E claro que é socialismo. Esses ignorantes fi-lhos duma puta. O que eles acham que é seguro em grupo, a não ser socialismo? Só a ideia de comprar seguro em grupo! Se socialismo é uma mancha na qual não se pode persistir, então, porra, você não deveria estar em uma apólice de seguro em grupo. Você deveria pagar as porras dos médicos porque quando você tem 100 mil pessoas juntas como parte de alguma coisa, de um sindicato a uma ONG, e você diz, “Já que temos esse grupo atuarialmente, mais de nós seremos saudáveis, portanto seremos capazes de levar a diante a ideia de seguro em grupo, e todo mundo terá um plano acessível…” Isso é socialismo. Nada além de socialismo. 

É sim, literalmente. 
Então toda a ideia de seguro em grupo, em que obviamente todo mundo acredita, como aquele cara no YouTube “Não deixe o governo tirar meu seguro saúde…”. Você olha para aquilo e pensa que só tem uma coisa que pode tornar as pessoas idiotas, e é o dinheiro. Quando você paga as pessoas para mudarem seus votos, as merdas acabam sendo votadas. Essa é a democracia norte-americana hoje. Você pega o Senado e está olhando para 100 votos, que não representam nada em termos de representação popular. Quando 40% da população controla 60% dos votos na casa mais importante de um Legislativo bicameral, você tem uma oligarquia. 

Estou ficando deprimido. 
E tem sido assim por anos, e é por isso que somos capazes de marginalizar porcentagens cada vez maiores da nossa população. Fodam-se suas posições. 5%, 10%, 15%. Quantas pessoas você vai deixar de fora dos condomínios fechados? Quantos guardas você vai contratar? 

Os guardas vão ser as únicas pessoas da classe trabalhadora nos condomínios fechados. 
Isso. Você vai contratar pessoas para vigiarem as suas coisas, mas não vai dar plano de saúde a elas. 

 


Na segunda temporada de The Wire, a trama sobre o sindicato dos estivadores mexeu comigo. Ambos os meus avós eram operários da indústria de aço e…
É mesmo? 

É, e meus tios também, e sempre tinham as demissões em massa e as preocupações em relação aos turnos. Isso era numa usina fora da Filadélfia. Ela está totalmente desativada hoje em dia e a vizinhança onde nasci virou uma cidade industrial sem indústria, e os problemas de vício ali parecem piores do que nunca. E é um estado pós-industrial, certo? Assistir à segunda temporada me fez pensar sobre como o comércio de drogas se relaciona ao estado pós-industrial. 
Meu companheiro de escrita, Ed Burns, definiu melhor: “Quando a economia encolhe, ela joga mais pessoas nas esquinas”. É simples assim. O vício é uma indústria em crescimento na América. Não só na América negra, mas no país inteiro. Olha a metanfetamina. Essencialmente, por o tráfico de drogas ser em parte um imperativo econômico, ou seja, ser a única fábrica que funcione em partes da América, e portanto ser um empregador viável onde nenhum outro empregador viável existe, vai ter o seu próprio atrativo. Mas na verdade, nesse sentido, isso vai além do dinheiro. As pessoas são definidas pelo que fazem nessa cultura. Acho que é a condição humana. Não acho que tenha sido nem um pouco diferente em outras épocas da história. Você é a sua profissão. Você é o seu negócio. 

Concordo com você. 
Quando você não tem mais um negócio, você anseia tanto por um propósito que acaba afetando o âmago do seu ser. É algo que acho que muita gente não entende a respeito das pessoas que estão no comércio de drogas ou que são viciadas, que a escolha delas não oferece apenas dinheiro. Do ponto de vista das pessoas que estão chapando, essa escolha lhes oferece um propósito. 

Isso acontece. A dependência te dá um sentido quando você está desesperado. 
Nós fingimos educar os 10 ou 15% da classe mais baixa da sociedade norte-americana para se juntarem ao status da economia existente, mas é tudo uma farsa. Não estamos dando a eles uma educação boa o suficiente para darem esse salto para dentro da economia de serviços. Na verdade estamos preparando-os para as esquinas e para as prisões. E talvez eles não sejam instruídos, mas com certeza não são idiotas. Eles estão vendo. Então, já que eles estão vendo, que merda você espera? Eles sabem que estão sendo moldados para as esquinas. 

O papel está claro para eles. 
Todo viciado que encontrei na vida sabia o que tinha que fazer ao acordar de manhã, do mesmo jeito que qualquer pessoa com uma profissão. Ele tinha que arranjar US$10 num mundo que não queria dar merda nenhuma a ele. Ele tinha que ficar chapado e precisava de no mínimo US$10 no final do dia. 

É um imperativo forte. 
E o cara não tem crise existencial. Por outro lado um cara que aceita as cartas econômicas que lhe foram dadas pela América pós-industrial e simplesmente senta na sua varanda e diz, “Bom, eu não sou necessário…”, de certa forma, isso é muito mais brutal do que dependência e morte, mas não entendemos isso. Da nossa posição privilegiada de classe média ou de classe média alta, da posição privilegiada dos legisladores, coisas como “Diga Não às Droga” parecem relevantes. 

É, uma campanha muito eficiente. 
Dá a impressão de que podemos facilmente… 

E também assume que todos têm as mesmas opções. 
É verdade, tipo, “Eu deveria dizer sim pra que, seu filho da puta? 

Polícia, escola, indústria, mídia—todas essas instituições foram discutidas em The Wire. Eu sempre imaginei se vocês tratariam de outras instituições como a indústria financeira ou o a saúde pública, por exemplo, se tivesse uma sexta temporada.
Imigração era um tema que eu teria abordado. O problema é que teve um atraso de quase dois anos entre a segunda e a terceira temporada. A HBO demorou para renovar o programa. Eles estavam em cima do muro. E até renovarem, juntarmos a equipe novamente e entrarmos no calendário deles, se passaram dois anos. Então para nos reorganizarmos e fazermos uma pesquisa sobre imigração… 

Há uma grande população latina em Baltimore? 
Só na última década. Baltimore quase não tinha população latina quando eu era repórter. Então, de uma hora pra outra, pessoas da América Central começaram a aparecer no Sudeste de Baltimore. Eles formaram uma comunidade imigrante incrivelmente forte. 

Teria sido fascinante ver como The Wire teria tratado esse assunto.
Tudo o que você tem a fazer é assistir ao debate nacional e perceber que a imigração é uma fonte incrivelmente potente de atrito e ideologia, e talvez sempre tenha sido na vida norte-americana. Então, eu teria adorado ter feito isso, mas nenhum de nós falava espa-nhol e nenhum de nós havia pesquisado nada a respeito. Teria tomado certo tempo. Mas havíamos pesquisado o sistema de ensino e estávamos prontos para fazer aquilo. 

E esse foi o foco da quarta temporada. Isso meio que remete à minha primeira pergunta. Como um programa como The Wire gradualmente costura sua trama através das temporadas? É tão intrincado e ao mesmo tempo tão claro, e todos os pedaços se encaixam. Me pergunto como a imigração se encaixaria.
O problema era o seguinte, se você pensar como foi cuidadosamente criado, você precisa do personagem Marlo. Você precisa do gancho de duas temporadas do Marlo e dos corpos nas casas vazias, e tudo isso foi planejado. Então teríamos que ir disso para a mídia. A quarta e a quinta temporada talvez sejam mais conectadas do que as outras de The Wire.

É, em retrospecto dá para perceber. Acabei de assistir a série toda pela terceira ou quarta vez nas últimas semanas. 
Uma das coisas pelas quais tenho enorme desprezo—bom, não enorme—, eu quero mais é que se foda, quando eu leio, só dou risada, é a quantidade de debate que existe sobre qual é a melhor e qual é a pior temporada. 

É impossível dizer, porque a série é uma grande história. Eu não acho que alguém possa não gostar da segunda temporada e ainda assim apreciar o que vem depois. Tudo é essencial e cumulativo. 
Eu sei que existem algumas divisões artificiais em termos de quando terminamos uma temporada, e vamos terminá-la num ponto que dê alguma repercussão. Acho que dá para debater isso. Mas, para mim, a primeira temporada é a mais fraca. Ela criou o caldeirão, o cerne de valores a partir dos quais íamos construir além. Fez tudo o que deveria fazer, mas para mim algo acontece nas temporadas 3, 4 e 5 que foi informado por tudo que você assistiu em 36, 48 ou 60 episódios. 

Com certeza. 
Então essa noção de que estava em seu estado puro no começo e depois aprofundamos cada vez mais? Não, não, não, é exatamente o contrário. Estávamos construindo para os 15 minutos finais do programa—e fazendo isso por muito tempo. 

 
É ótimo voltar ao começo e ver as coisas começando a se encaixar. Mas sim, acho que o único debate válido em termos de qual temporada é melhor é qual versão de “Way Down in the Hole” é melhor. Meu voto vai ou para o Blind Boys of Alabama ou Steve Earle. 
[risos] Para mim é assim, você pode dizer que capturamos esse aspecto melhor do que outro, ou que executamos essa sinopse me-lhor do que aquela outra. Isso tudo é legítimo. É aberto ao debate. Sei que a coisa não é perfeita. Toda a escrita é abandonada em algum ponto por causa de prazos, orçamento ou do que quer que seja. Mas o problema foi que, quando pensamos em imigração, não funcionaria para a última temporada. A mídia tinha que ser a última temporada porque a última crítica… Bom, a crítica é maior que a mídia. É mais do que criticar um jornal. É nos criticar. 

Enquanto consumidores de mídia, você quer dizer. 
Sim. Jornais têm cada vez menos ambição e estão exigindo cada vez menos de si mesmos como árbitros do que é realmente importante, de quais são nossos problemas e como estamos lidando com eles. No final das contas The Wire estava tentando dizer, “Olha, se qualquer coisa nas nossas quatro primeiras temporadas mexeu com você, não pense que alguém vai tentar falar a respeito disso—muito menos os cães de guarda da sociedade—porque seus dentes foram removidos”. Fizeram isso com eles mesmos. Tínhamos que falar isso no final porque estávamos dizendo: “Essa é a América que você construiu, mas, se você pensa que o primeiro alarme vai disparar, pode esquecer.”

 

E se alguém em nossa cultura fosse disparar qualquer tipo de alarme, seria legal se fossem os escritores do jornal. 
Ainda assim, estava criticando não só o jornal como também as pessoas que lêem o jornal e por extensão as pessoas que assistem televisão. Basicamente, para citar o Pogo, “Encontramos o inimigo e ele somos nós.” 

Certo. E depois que tudo estava armado, não tinha como você dizer, “Ah, e por falar nisso, imigração também!” 
É. “E por falar nisso…”, também pensamos sobre a saúde pública e sobre outras coisas. Quer dizer, eu poderia ter um argumento para uma sexta temporada se a imigração tivesse sido introduzida entre as temporadas 3 e 4. 

Teria que ter começado a se desenvolver ali. 
Antes da ascensão de Marlo. Poderíamos ter segurado a ascensão de Marlo, com os corpos nas casas vazias, segurado aquilo até as temporadas seguintes, e então começado no gancho das últimas duas temporadas, mas então teríamos ficado fora do ar por três anos e eu teria que bater na porta da HBO de novo… 

“Eu tenho mais uma história pra contar.” 
É. “Eu sei que tinha dito que terminaria em cinco, mas eu quis dizer seis.” Então não ia acontecer por uma série de motivos. De qualquer forma, vi gente dizendo erroneamente que a sexta temporada seria sobre imigração. Sem chance. A temporada 4 teria sido sobre imigração se tivessem sido seis temporadas. 

Entendi. 
Seria o único jeito de ter dado certo. E o único motivo pelo qual pensamos sobre outras coisas e dissemos não foi porque, mesmo que tratássemos do assunto com a mesma dinâmica, como a da saúde pública, como acabamos de discutir, seria a mesma da educação pública.

Certo. 
Então, mesmo que você esteja provando seu ponto de vista, e que você esteja usando a locação de um hospital para fazer isso para uma outra temporada de The Wire, você está basicamente falando das mesmas questões institucionais, e da inabilidade das culturas políticas, sociais e econômicas para reformar…

Só que relativo a uma instituição diferente. 
É, você só está trocando. E quantas vezes você vai fazer Kima, McNulty, Daniels e Bunk, quantas vezes eles vão subir a colina e ver a pedra rolar novamente? Chega uma hora que as caracterizações, os tijolos e a argamassa se desgastam. Quantas vezes o McNulty vai fazer merda pra fazer algo honesto em seguida e voltar a fazer merda? 

[Risos.]
Chega um momento em que você tem que honrar o fato de que os personagens passam por uma transformação. Então é só ficar escolhendo uma ladainha contínua de coisas para criticar na sociedade. Olha, eu adoraria contar uma história a respeito das questões da saúde pública, mas talvez seja a hora de deixar o universo de The Wire e fazer isso com outro universo.

Uma coisa importante que imagino sobre The Wire é como você foi construindo personagens complexos através de influências da vida real. Omar é um dos grandes, claro, mas…
Por que não falamos do Omar? Todo mundo me pergunta sobre ele. Estas são algumas pessoas que usamos para construir o personagem do Omar—e são pessoas de verdade, com nomes de verdade que seriam reconhecidos nas ruas de Baltimore. Anthony Hollie, Ferdinand Harvin, Cadillac e Low. Não sei os nomes deles de verdade, mas eles eram um grupo. E tem também Donnie Andrews. Ele era o grandão que foi para a guerra com o Omar na última vez. Ele foi morto no tiroteio da emboscada no apartamento. Esse é o Donnie de verdade. 

Nossa, o cara que estava com Omar e Butchie e depois era o substituto do Omar contra o Marlo? Uau, fala sério! 
É, é esse cara. 

O ator que faz o Diácono também veio das ruas, certo? 
Ele era um grande traficante de drogas. Melvin Williams, o pequeno Melvin. Ele era famoso desde os anos 60. Ele vendeu heroína e cocaína por cerca de 30 anos em Baltimore. Foi preso pelo Ed em 84 e saiu em 2001. Almoçamos todos juntos e ele veio trabalhar como ator. 

Então, de todas essas pessoas, você pegou e escolheu traços e histórias de suas realidade para o Omar? Por exemplo, Omar carrega uma escopeta. Era gay. Tinha todas essas caracterizações fantásticas. 
Olha, quando ele pula pela janela durante o tiroteio, isso foi uma coisa que o Donnie Andrews fez de verdade. Ele pulou do sexto andar da Murphy Homes quando foi pego em uma emboscada e ficou sem munição. Ele pensou nisso? Não, mas ele fez e sobreviveu e conseguiu fugir mancando. Aconteceu. Ele também pulou da ponte da linha do trem em Poplar Grove uma outra vez. É lendário. Existem outras pessoas que contam isso no Oeste de Baltimore além do Donnie. Ele não está inventando. Se você der esse pulo, você morre. Se eu der esse pulo, viro uma poça no chão. 

Mas ele deu. 
Ele tinha que pular e não ia morrer ali. 

Eu adoro que o pulo do Omar foi baseado em uma história real, porque era uma das coisas na série que as pessoas ficaram meio “Ah, isso nunca ia acontecer. Ele teria morrido.” 
E na verdade nós só fizemos o Omar pular do quarto andar. 

Enquanto Donnie na verdade pulou do sexto. 
O prédio tinha só cinco andares e nós dissemos, “É, o quarto tá bom. Ninguém vai acreditar mesmo, mas ele fez isso”. Outras coisas inventamos. Nenhuma das pessoas que citei é homossexual, que eu saiba, mas teve uma momento que eu mesmo me enganei. Alguém tinha me dito, quando eu era repórter anos atrás, que Cadillac e Low eram gays—que eles eram um casal. Achei que era verdade, e em algum momento isso me fez dizer, “Esse é um personagem interessante para ter como gay porque ele pode ser abertamente gay, já que não deve nada pra ninguém”. É impossível ser um policial assumidamente gay. Tudo bem ser uma lésbica, mas é dureza ser um policial gay. E, com toda a homofobia, é difícil ser assumidamente gay no comércio de drogas. 

A menos que você seja um fora da lei como o Omar era. 

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