Imagem por Courtney Nicholas
Imagino que a origem de O Lobo de Wall Street tenha sido, mais ou menos assim:
O Marty e o Leo queriam trabalhar novamente juntos, claro; têm um historial fantástico que vem desde Gangs de Nova Iorque. Quando a relação entre os dois começou, havia um benefício mútuo — eram talentosos, mas vinham ambos de direcções diferentes. Na altura, o Scorsese configurava-se uma espécie de antiguidade desconsiderada dos filmes de crime e um estudioso da história do cinema, enquanto o Leo era o ex-menino bonito cuja identidade se tinha eclipsado devido à fama estrondosa de que gozava. O Scorsese pôde colocar em prática o seu sonho de décadas e o Leo pôde trabalhar com o seu herói da realização. O Gangs não foi a melhor das suas parcerias, mas ao menos juntou-os e permitiu que fizessem melhores filmes depois — culminando com o triunfo que foi The Departed. Pela altura em que resolveram fazer o Lobo, tenho a certeza de que estavam tão em sintonia quando os ATL Twins quanto à forma como trabalhar e quanto ao material que queriam explorar.
Portanto, apesar de Gangs não ter tido o melhor dos resultados, acabou por abrir caminho para que The Departed arrecadasse uma data de Óscares, incluindo o de Melhor Realizador (um aparte: será que a pequena participação da .44 magnum no Taxi Driver fez com que o Marty não ganhasse o Óscar até chegar aos 64 anos?). Além disso, tenho a certeza de que com este arranjinho, tanto o Leo como o Marty, conseguiram sacar um bom guito. Estamos a falar de duas pessoas que garantem que os filmes se safam financeiramente e na crítica e levam a que um gajo qualquer com dinheiro para gastar em acções ou petróleo ou computadores se arrisque a investir no jogo. Repito, eles são o DiCaprio e o Scorsese, quem lhes vai dizer “não”? Estes dois malham Golden Globes como quem malha finos numa sexta à noite e o pessoal vai em massa ver os seus dramas masculinos tal como vão em massa ver filmes com gajos em collants e morcegos no peito. Se lhes apetece mostrar o Leo a meter umas linhas directamente do rabo de uma rapariga, que se foda; se quiserem ter uma sequência de 10 minutos com Quaaludes (a melhor parte do filme!), que se foda; e se eles quiserem ainda que os cabrões dos protagonistas se safem à grande no final do filme…QUE SE FODA, É A VIDA.
Ao utilizarem o livro, escrito pelo próprio lobo, Jordan Belfort, o Leo e o Marty (e é importante notar que os dois estão creditados como produtores desta vez) tentaram lançar-se numa crítica a Wall Street e à cultura da ganância. Tudo serve para foder por trás o capitalismo desregulado, tal como o Spring Breakers fez antes deste filme, e mostrar o quão grotesco se pode tornar o Sonho Americano. E, tal como o pessoal envolvido no Spring Breakers, estavam determinados a curtir enquanto o faziam. Refiro-me às personagens, aos produtores e à equipa de filmagens.
Consigo imaginar algumas conversas e reuniões da pré-produção. São ambos gajos de esquerda e por isso aposto que dizem um para o outro, “Vamos mostrar o quão feias as coisas se podem tornar no mundo dos 1 por cento — uma representação corrosiva de uma cambada de estúpidos que de forma irresponsável e sem remorsos sacaram dinheiro a cidadãos esforçados. E depois mostramos o dinheiro que esbanjaram: drogas, mulheres, jogo. Os nossos heróis vão ser os nossos vilões, tal como na vida real. Aqui não há vencedores, mas há tiranos… Queres mesmo ser um tirano? Ok, é isso, mas então precisamos de ir mesmo longe, muito longe; vamos mostrar todo o tipo de cenas estúpidas que estes gajos fizeram”.
É por causa de decisões que seguiram esta linha de raciocínio que esta se torna uma história dos tempos modernos, em que, estranhamente, gostamos e odiamos as personagens. Tal como na vida real. Gostamos das personagens porque são interpretadas pelo Leo e pelo Jonah Hill e porque mostram o seu lado mais requintado. Parecem dois gajos fixes, com quem se pode curtir, apesar das asneiras em que se envolvem, tal como o DeNiro e o Pesci em Touro Enraivecido, Tudo bons rapazes ou em Casino. E tal como nesses filmes, sobressai o Yin e Yang do universo mais conseguido de Scorsese — apesar de neste caso ser mais do tipo Yang e Yang, com ambos a interpretarem pequenas variações da mesma espécie de sacanas.
Depois há uma razão pela qual gostamos deles, e a razão pela qual a audiência olha para este filme como uma grande fantasia em que quase podem tocar: porque, no fim, apesar de não jogarem pelas regras, os protagonistas acabam por ganhar. A audiência gosta de vencedores, mesmo que sejam más pessoas, porque lhes dá uma desculpa para justificarem os seus próprios comportamentos sem terem de os confessar a alguém. É uma das principais características da cultura americana, daí o Werner Herzog ter dito que Los Angeles é a epitome de uma cidade “americana” largamente influenciada pela cultura e estética europeias. Olhem só para The Jew of Malta, Psicopata Americano, O Padrinho, Scarface, Blood Meridian, Touro Enraivecido, Taxi Driver ou Tudo Bons Rapazes. A tensão criada nestes filmes acumula-se e liberta-se em cenas únicas. Por muito que gostemos das personagens destes filmes, e por muito que queiramos seguir a viagem com eles, o cenário é demasiado real. O Scorsese foca-se em vilões da vida real, e os vilões da vida real têm famílias, pisam caca de cão, comem massa e fazem todas aquelas coisas que nós todos fazemos.
Quando um filme critica a ganância capitalista através do filtro da máfia (O Padrinho, Tudo Bons Rapazes), é muito mais fácil seguir caminho com as personagens porque elas não pertencem ao nosso mundo, ou então, se pertecem, ficam-se pelos detalhes. No caso de O Lobo de Wall Street, estes vilões — estes “gajos” — são aqueles que nos empurraram para a Grande Recessão, que afectou quase toda a gente, ou pelo menos alguém que conheças.
Voltando às questões iniciais que deveriam ter sido levantadas na pré-produção, a principal deveria ter sido a do final do filme: “Devemos castigar o Lobo por todo o dinheiro que sacou a outras pessoas e pela forma escandalosa como o gastou? Ou vamos deixá-lo safar-se facilmente, tal como se safou na vida real, para incluir na nossa crítica o sistema que permite que gajos como estes saiam para a rua, mesmo quando fazem um mal tão evidente?”
Parece que se decidiram pela segunda opção, o que deixa um estranho sentimento a pairar no final do filme (e que tenho a certeza que foi intencional). Podemos olhar para isto de forma alargada e pensar que tanto o Scorsese como o DiCaprio estão a ser irónicos na forma como acabaram o filme. Mas mesmo assim deixa um sabor amargo, como se tivéssemos sido enganados, principalmente porque as personagens não são castigadas (o que era justo). Isto não significa que esperasse justiça.
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