Entretenimento

Terry Gilliam

Terry Gilliam começou sendo o cara mais amado no colégio e depois teve todos os empregos que todo mundo sempre quis ter e colaborou com todo mundo que qualquer um gostaria de conhecer ou ser. Ele trabalhou para o Harvey Kurtzman em sua tentativa editorial mais bem-sucedida pós-Mad. Ele fazia parte do Monty Python e fez todas aquelas animações incríveis. Depois disso fez várias superproduções maravilhosas e depressivas como Os Bandidos do Tempo, Brazil—O Filme, Os 12 Macacos, O Pescador de Ilusões e Medo e Delírio. Além do mais o George Harrison, também conhecido como o melhor Beatle, foi seu fã número um. O Gilliam é um gênio. Acho que as coisas foram tão fáceis para ele que ele tem que fazer os filmes mais difíceis de serem filmados só para não ficar entediado.

A pessoa que deveria ter feito essa entrevista morreu ou coisa parecida enquanto fazia uma matéria em Detroit, e eu fui chamado de última hora. Não tive muito tempo para pesquisar, apesar de eu ter gastado muitos dos meus anos de formação obcecado com Terry Gilliam. Essa obsessão diminuiu quando comecei a ficar obcecado em como ser o Terry Gilliam. Então essa entrevista tem um pouco do conteúdo de banco de dados de quando se fala com alguém tão famoso como ele, mas eu também queria saber como, para ele, depressão e esperança se relacionam com o processo do trabalho criativo. Não sei se fiz um bom trabalho. Não assisti aos seus filmes mais recentes. Minha esperança era que ele não desligasse o telefone e pensasse: “Que cara imbecil”.

Vice: Gostaria de começar com algo que é familiar e especial pra mim. Eu amo a revista Mad e o Harvey Kurtzman, então queria te perguntar como foi crescer lendo a Mad e então ir trabalhar com o Harvey.
Terry Gilliam:
 Bom, a Mad era A revista quando eu era adolescente. Era tão inteligente, engraçada e tão… problemática.

Era fantástica—a bomba na caixa de correio na página de cartas.
É, aquilo tudo era libertador. Era tipo “Uau!”. Ficava esperando ansioso a próxima edição. E a arte era brilhante. Jack Davis, Wally Wood, Willie Elder… Não era só anarquia destrutiva. Era inteligente de verdade. Eles eram brilhantes em satirizar o que estivesse acontecendo no mundo, fossem outras HQs, televisão ou filmes. Era um espelho fantástico e engraçado de frente para o mundo. Então fiquei muito fã e comecei a aprender a desenhar me baseando naqueles caras. As mulheres de Wally Wood era tão sensuais que eu sentia que aquilo era uma forma de pornografia, e eu escondia a revista dos meus pais de tão culpado que eu me sentia. 

É assim que você sabe que se trata de um ótimo trabalho. Eu lembro das primeiras seis edições. Meu pai tinha. Não me lembro em que ano saiu a primeira, 51, 52? Mas é forte até hoje. O sexo e a raiva estão na cara.
Não existia nada igual na época, então não tinham com o que competir. Todos cartunista que eu conheço da minha geração foram completamente afetados e influenciados pela Mad. O Harvey virou quase que um deus para todos nós.

Você trabalhou para o Harvey na revista Help! junto com o Robert Crumb e outros caras importantes.
Isso foi depois que Harvey saiu da Mad e suas outras revistas, Humbug e Trump, iam e vinham. Help! foi uma que pareceu ganhar vida própria. Eu era estudante na época, e junto com alguns amigos tomamos conta do jornal de literatura e arte da escola e o transformamos em uma revista de humor. De muitas maneiras, Help! era o modelo. Nossa revista chamava Fang

Você estudou no Occidental College em Los Angeles, certo?
Sim. Começamos a fazer paródias de coisas como Amor, Sublime Amor. Mandei uma cópia da nossa revista para o Harvey e ele me escreveu uma carta legal de volta e isso foi o fim de tudo para mim—eu simplesmente tinha que ir para Nova York e conhecer o cara. Eu queria fazer parte daquele mundo. Respondi a carta dele dizendo que estava pensando em ir para Nova York quando me formasse e ele me respondeu dizendo, “Esquece isso, não tem nada aqui pra você, somos auto-suficientes”. Aí eu falei, “Nada disso, estou indo”.

Legal.
Foi muito divertido, naquele verão eu estava lendo um livro chamado Act One. É a autobiografia de Moss Hart. Ele foi um dramaturgo incrivelmente bem-sucedido. Sua história foi a de um jovem inexperiente indo para Nova York para encontrar seu herói e acabar virando seu parceiro—foi isso que aconteceu comigo. Encontrei com o Harvey no Hotel Algonquin, que na época era famoso pela mesa redonda onde Robert Benchley e Dorothy Parker e todas essas mentes brilhantes se encontravam nos anos 40. Eu subi e bati na porta da suíte dele, e não era o Harvey que estava ali, mas Willie Elder, Al Jaffee e Arnold Roth. Eles estavam ocupados trabalhando na primeira edição de Little Annie Fanny

Meu Deus.
Foi como entrar no Monte Olimpo e encontrar os deuses. Mais tarde o Harvey apareceu, e é aí que a sorte entra na jogada. O editor assistente estava indo embora e eles procuravam alguém para a vaga, mas pagando quase nada. E eu estava ali de pé, na frente deles, e foi assim que tudo aconteceu.


Brazil (1985)

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Como é conhecer e depois trabalhar com alguém que você idolatra?
Bom, chega uma hora em que eles descem do pedestal e viram pessoas de verdade. Harvey era muito meticuloso no trabalho. Ele foi um grande professor, mas também me deu uma liberdade incrível. Uma das coisas que costumava fazer era pegar fotos ou pinturas e legendá-las. Eu ficava séculos na biblioteca pública de Nova York olhando fotos e livros antigos. Aprendi muito—a respeito de arte e história—só fazendo isso. A equipe da revista tinha basicamente quatro pessoas: Jim Warren, o publisher que a gente nunca via, Harvey, eu e Harry Chester, que era o produtor. Harvey ficava no seu sótão em Mount Vernon trabalhando, e eu ficava no escritório administrando com Harry Chester. Como eu era o editor assistente da revista, convivia com tudo quanto é cartunista jovem que chegava em Nova York. Podia ser o Gilbert Shelton do Fabulous Furry Freak Brothers ou o Bob Crumb. A gente tinha mais ou menos a mesma idade. Acho que eles pensavam que eu era bem-sucedido porque era o editor assistente da Help!, mas eu ganhava menos de US$2 por semana a mais do que se eu estivesse no seguro desemprego. [risos] 

Foi lá na Help! também que você conheceu o John Cleese, que te ajudou a circular nas indústrias criativas como um tubarão. Eu tenho muita inveja disso, muitos artistas demoram a vida toda para serem muito bons em tantos campos diferentes.
O que eu queria mesmo era ser diretor de cinema. Esse era o meu objetivo, mas eu não tinha a menor ideia de como chegar lá. Eu cresci no Vale de San Fernando, e estava tudo ali. Eu conhecia toda a garotada de Hollywood por conta dos acampamentos de verão onde trabalhei—a filha de Danny Kaye, o filho de Hedy Lamarr, as filhas de Burt Lancaster. Eu era monitor no acampamento enquanto fazia faculdade. Hollywood estava tão perto, mas eu simplesmente não conseguia enxergar uma maneira de entrar num sistema daqueles. 

Mas você começou a construir conexões para aquele mundo através da Help!
Por causa dos fumettis

Só um parêntesis, para aqueles que não sabem, fumettis são HQs que usam fotografias.
Isso. E nós precisávamos de atores para isso. Só pagávamos US$15 por dia, mas eu fui conhecendo gente assim. Conheci o Cleese e o Woody Allen desse jeito. 

Fazer fumettis deve ter te ensinado coisas que acabaram sendo úteis depois, quando você foi fazer TV e então cinema.
Eu produzia os fumettis, organizando locações, figurinos e atores. Aprendi muito. O lance com o Harvey é que ele sempre quis ser um diretor, então as HQs na Mad eram bem cinematográficas. Ele usava os quadros como uma câmera.

O que você fez depois que a Help! fechou?
Eu fiz mochilão pela Europa. Quando estava voltando da Turquia sem dinheiro suficiente para retornar aos EUA, parei em Paris. Fui ver um amigo que estava editando uma revista lá e pedi um emprego para conseguir dinheiro e poder voltar para casa e ele me disse: “OK, enche duas páginas com o máximo de piadas sobre homens de neve que você conseguir”. Então eu sentei no meu quartinho de hotel em Paris, morrendo de frio e desenhando homens de neve, e isso me deu dinheiro suficiente para a passagem de avião. Quando voltei não tinha onde ficar, além do sotão do Harvey. [risos] Foi muito legal, uma época muito boa.

Uau. Foi quando você voltou que o John Cleese pediu para você fazer animações para o Monty Python?
Não. Depois de ficar um tempo no Harvey mudei para Los Angeles. Você se lembra do Joel Siegel, o crítico de cinema do Good Morning America? Ele era um dos meus melhores amigos na época e fizemos um livro chamado The Cocktail People. Eu acho que ganhei uns 12 dólares e meio com o livro, mas isso fez com que o Joel me arrumasse um emprego em uma agência de publicidade chamada Carson/Roberts. Eles inventaram duas coisas: o smiley e a frase “Have a happy day” (Tenha um dia feliz). Era isso que as recepcionistas diziam quando você ligava pra lá. Elas infligiram isso no mundo. Eu e o Joel trabalhamos lá durante um ano, e quando me cansei tive vontade de me mudar para a Europa—eu tinha me apaixonado pela Europa. Eu morava com uma inglesa na época, e trabalhava para revistas de lá. Cleese era a única pessoa que eu conhecia por lá, então liguei pra ele. A essa altura o John já era bem conhecido na televisão de lá. Pedi a ele que me apresentasse a alguém da televisão já que eu queria parar de trabalhar em revistas. Conheci um produtor que trabalhava no Do Not Adjust Your Set, que era onde Mike Palin, Terry Jones e Eric Idle escreviam e atuavam. O produtor era um cartunista amador. Ele gostava das minhas HQs então comprou alguns rascunhos de mim. Depois fui empurrado pra cima dos outros três, muito a contragosto do Mike e do Terry. De repente eu estava naquele grupo e, quando desenhei para eles, a conexão começou.

Era um desenho animado?
É. Basicamente o que aconteceu foi que o Eric e eu ficamos bons amigos e começamos a trabalhar em um outro programa chamado We Have Ways of Making You Laugh. O núcleo era formado por cinco ou seis pessoas. Eu era o desenhista. Um convidado viria ao programa, eu faria uma caricatura dele, e no final a imagem da câmera se misturava ao desenho do convidado. Uma semana eu sugeri fazer uma animação. Eles me deram duas semanas e £400 para fazer. O único jeito de fazer era simplesmente cortar os desenhos e movê-los. 


Herói por Acidente (1977)

Então seu estilo famoso de colagem stop-action foi, a princípio, uma necessidade financeira.
Ninguém tinha visto nada parecido com aquilo na televisão antes, e do dia pra noite eu virei um animador. [risos] Aquilo deu início a uma segunda temporada de Do Not Adjust Your Set. Éramos seis, e viramos o Python.

Falar a respeito do Monty Python é até difícil pra mim, porque foi uma coisa onipresente em vários momentos da minha vida. 
Ah, mais uma vítima.

A molecada que não se ajusta sempre descobre o Monty Python.
O engraçado é que nos EUA só começaram a descobrir o Python há uns 11 anos atrás. É uma audiência muito jovem, mas de repente trombam com ele e acho que o absurdo da coisa toda agrada.

Foi assim que eu comecei a gostar. Eu não gostava da cultura popular da época e o Python fazia sentido pra mim.
É isso o interessante do Python—tem um lado muito inteligente e erudita, e outro completamente bobo e juvenil. Então sempre agrada a molecada mais esperta ou mais anárquica que tem problemas com autoridade. Nós somos essas pessoas e pelo visto passamos a atitude pra frente, para as novas gerações.

Bom, eu nem sei o que perguntar porque eu sei tanta coisa sobre o Monty Python. [risos] Talvez já tenham falado muito a respeito.
Muita coisa foi escrita a respeito. Quando nos entrevistam a gente responde uma coisa meio pronta. Não me lembro dos pesadelos e das épocas horríveis. Só lembro das coisas boas. Foi uma época muito especial porque a BBC era muito laissez-faire. Uma vez que tivessem dito “sim”, a gente podia ir lá e fazer.

Acho que isso não acontece mais.
Bom, tem Os Simpsons e o South Park, e graças a Deus tem Family Guy, que é maravilhoso. De qualquer maneira, a BBC era uma organização velha e preguiçosa que deixava as coisas acontecerem, mas hoje em dia é terrivelmente burocrática. É cheia de executivos. É quase como um estúdio de Hollywood. Tem gente demais vivendo de gerenciar e tomar decisões. Quando a gente estava lá, o produtor aprovava, tinha o dinheiro e a gente ia lá e fazia.

Já que tudo já foi dito sobre o Monty Python, vamos seguir em frente. Aluguei seu primeiro filme, Jabberwocky, em minha biblioteca pública achando que teria a ver com o Python, mas é uma coisa bem diferente.
Foi minha fuga do Python—ou semifuga, porque você tem Mike no papel principal, e o Terry Jones também. Tentaram vender como um filme do Python, o que foi um grande erro. 


Monty Python e o Cálice Sagrado (1975)

As pessoas que fazem marketing de cinema são uns puta duns cuzões. Eu moro em Nova York e os cartazes de filmes nas estações de metrô não dizem nada a respeito deles, pelo contrário. São feios, vagos e brandos.
Só tem os rostos das duas estrelas. Eu amava e colecionava aqueles cartazes poloneses antigos. Eram abstratos e lindos e faziam seu cérebro girar um pouco. 

Jabberwocky foi impactante pra mim. Eu tinha 13 anos e fiquei confuso e irritado. Era engraçado e assustador. O final não era o que um adolescente esperaria. E isso me fez pensar em você quando era adolescente. Você era um cara popular no colegial, não era?
Eu era muito popular. Me destacava nos esportes, era o orador da classe e o presidente do grêmio escolar. Eu era um ser humano perfeito. Mas nada disso fazia a menor diferença pra mim. 

Imagino que ser tão popular foi algo que te ajudou a fazer amigos e conexões na sua carreira. Quer dizer, ser um cara bem adaptado não deve ter atrapalhado.
Mas eu sempre estava criando meu próprio mundinho. Quem via de fora devia achar que eu estava socializando o tempo todo. Mas não, sempre fui gregário e gosto de verdade das pessoas até elas dizerem não para as minhas ideias e projetos, então passo a odiá-las e tenho vontade de matá-las. [risos] 

Mesmo assim, você é muito sortudo por nunca ter tido um emprego “normal” na sua vida.
O último emprego “normal” que tive foi na linha de montagem da fábrica da Chevrolet em Sacramento Valley no turno noturno porque eu estava na faculdade. Eu odiava. A natureza repetitiva, a natureza mecânica estupidamente burra das oito horas que eu tinha que gastar ali todos os dias. Ao mesmo tempo, via que outras pessoas gostavam de estar ali. Eles recebiam o pagamento e iam pra casa encontrar suas esposas e famílias e era isso que os fazia felizes. Também ficava maluco de trabalhar em uma agência de publicidade; me sentia dentro de uma armadilha de burocracia. Foi esse tipo de coisa que me levou a fazer o Brazil, que era a catarse contra todos os empregos e situações pelas quais passei e tinham me deixado bravo. O resto do tempo eu gostava do que eu fazia. De verdade, eu podia desenhar coisas e criar esses mundos. Acho que essa era a diferença. Com papel e caneta eu tenho controle do mundo, num certo sentido. Acho que é por isso que muitos escritores progridem. Eles podem ser figuras solitárias mas não infelizes. É só dar uma folha de papel pra eles que começam a colocar as palavras ali. É assim que você passa pela bagunça que é sua vida.

Você diria que é uma pessoa que se chateia com facilidade?
Eu posso me entediar com facilidade, mas aí eu vou fazer alguma coisa porque não consigo aguentar isso. Prefiro me ocupar do que entrar em depressão.

Você só canaliza sua energia positiva?
Sim, apesar disso ficar mais difícil conforme você vai envelhecendo, porque é mais fácil ficar entendiado. As coisas são menos surpreendentes. Mas, sendo excitável visualmente, eu posso me sentar e olhar para alguma coisa e ficar impressionado com, sei lá, uma madeira entalhada ou a sombra desse abajur. Absorver o mundo à minha volta e apreciá-lo num nível visual me ajuda a superar muitos momentos chatos da vida. 

Apesar disso, você fica deprimido?
Fico deprimido muitas vezes. Perco muito tempo ficando deprimido. Ao invés de lutar contra isso, simplesmente me deixo levar. Deixo a depressão me levar ao fundo do poço. Quando não dá pra ir mais fundo, aí de repente você começa a rastejar de volta pra cima.


Storytime, um curta de animação (1968)

Às vezes a pessoa que consegue enfrentar a depressão e os aspectos amargos da vida não gostam de outras pessoas. Não querem falar com ninguém, muito menos se preocupar em vender uma ideia a um produtor ou agente.
Você provavelmente tem razão. Mas gosto de verdade de gente. Não fico assustado com elas e elas me surpreendem. Além do mais, falando com você agora ou com um grupo de pessoas, eu sou um pouco dife-rente de quem eu realmente sou. Estou fora de mim mesmo, atuando. Então volto pra casa e minha esposa é quem vê a verdade.

Me identifico com isso. E quando você está sozinho e sem estímulo é só você e seus pensamentos.
Mas na verdade isso é uma das coisas pelas quais estou lutando tanto agora. Por causa do Facebook e do Twitter e todas essas merdas, as pessoas não têm tempo para ficarem sozinhas e confrontarem quem elas são e quem elas são de verdade. Isso é a coisa que mais preocupa no mundo moderno. Pessoas parecem ser só extensões da ordem social hoje em dia. Nós temos uma casa na Itália sem telefone ou televisão, meu filho foi pra lá, ele estava acostumado a jogar videogame e ficou entendiado. Minha esposa dizia, “Precisamos fazer alguma coisa pra ele se divertir”, e eu dizia, “Não, deixe ele ficar entediado e você vai ver o que acontece”. Depois de dois dias de tédio, dizendo, “Não tem merda nenhuma pra fazer aqui”, ele começou a inventar coisas. Ele estava criando um mundo muito interessante, porque estava envolvido com aquilo. Não foi algo criado para ele. Acho que muitas das coisas que fazemos hoje em dia são criadas para nós. É tudo digerido e dado pra você. Eu gosto de videogames, mas também acho que eles são perigosos por causa do tempo e energia que eles consomem. Não é a mesma coisa que ler um livro.

Outra coisa é que você lê um livro no seu próprio ritmo, enquanto TV e videogames continuam, mesmo que você pare.
[risos] Exatamente. Aí você fica com aquela sensação terrível do tipo [voz sinistra], “Eles não precisam de você”. Outra coisa, meu filho tinha o videogame do Tony Hawk, e ele era muito bom nele. Aí começou a andar de skate e se deu conta de que era uma coisa que doía de verdade. E é isso que me incomoda em tantos desses videogames. Eles retiraram aquele elemento de dor. É só você se sentar ali e assistir sua força vital decair, mas você não está tendo a experiência de dor. Você esta sentando ali pulando pelo ar, aí você tenta ir pra fora e fazer isso no mundo real e, “Ai!”.

Depois de Herói por Acidente, você fez Os Bandidos do Tempo, um filme que eu adorava quando era criança. Na minha cabeça, está ao lado do Labirinto, A Magia do Tempo, do Jim Henson. Eu queria assistir sem parar. É também um de seus filmes mais positivos, ainda que ele tenha muitos elementos assustadores. Quer dizer, os pais do personagem principal morrem no final!
Parte do filme é a jornada de um menino que tem um monte de heróis. Ele vai os encontrando, e percebe que eles não são lá muito o que ele imaginava—não muito heroicos—e finalmente ele ganha o direito de se erguer com seus próprios pés. Seus pais deveriam tê-lo escutado ao invés de ignorá-lo.

É um tema comum em HQs como Batman e Superman. Crianças se-cretamente querem matar seus pais e ficarem livres das restrições impostas por eles. De qualquer jeito, só de pensar sobre Os Bandidos do Tempo agora, já me senti feliz. E o George Harrison estava envolvido no filme. Ele era o meu Beatle preferido. Eu não quero mudar de assunto qui, mas posso te perguntar como o George era?
Ele não era o Beatle quietinho, que a maioria das pessoas acham que era. Ele era engraçado e aberto. Acho que “sardônico” é a palavra. Ele era bem maldoso e um grande jardineiro. Ele ficou os últimos 20 anos de sua vida administrando 37 acres de um dos melhores jardins do mundo. Ele era um cara espiritualizado, mas era um piadista dos melhores. Ele era o fã número um do Python. 

Impressionante. 
George era um cara especial. Você não encontra muita gente assim. Ele era muito pé no chão e ao mesmo tempo sua cabeça e seu coração voavam alto.


As Aventuras do Barão de Munchausen (1988)

Os Bandidos do Tempo, pra mim, tem um final feliz. O personagem principal termina livre de seus pais e eu consigo imaginar suas aventuras continuando. Também gostei que o Sean Connery, que fez o papel do Rei Agamemnon no começo do filme, é um bombeiro no final das contas. 
Não era para o Connery aparecer no final. Era para ele morrer quando eles têm a grande batalha com Evil—iam aparecer muitos arqueiros e Evil iria virar um queijo suíço. Era para o Connery liderar esse grupo e ser esmagado por uma coluna que cairia. Mas acabou nosso tempo com ele. Nós só tínhamos um número X de dias com Connery, então tive que matar o personagem Fidgit, o que era uma ideia melhor no final das contas. 

Mesmo que isso tenha revirado meu estômago quando era criança.
Então chegou num ponto em que eu não tinha decidido o final do filme. Me lembro de falar com o Sean, e ele sugeriu que o Agamemnon voltasse como um bombeiro. Ele tava fugindo do fisco, então ele estava em Londres por um único dia, para encontrar com seu contador, quando o agarramos por literalmente uma hora e fizemos duas tomadas com ele, inclusive aquela onde ele pisca pro personagem principal. Só fui escrever as cenas um ou dois meses a partir disso. Em última instância, são os filmes que se escrevem.

Acidentes felizes. Então Os Bandidos do Tempo termina com um toque de esperança e Brazil termina sem esperança nenhuma…
É aí que você se engana. Aquele era meu final altruísta, aquele era meu final feliz! [risos]

Acho que eu nunca vi isso antes. [risos]
Acho que isso tem a ver com o que eu estava falando antes sobre inventar o meu próprio mundo. Foi isso o que fiz no final de Brazil. Sam está dentro de sua imaginação, e ele pode estar louco, mas quem está se lixando pra isso? Ele criou um mundo que é satisfatório para ele. O mundo exterior não consegue alcançá-lo e isso, pra mim, é felicidade. Agora, hoje em dia, no mundo moderno, essa ideia de alguém ficar sozinho, separado de seus colegas, é assustadora. Mas pra mim isso é libertador.

Brazil é um filme bem assustador.
Há muita maldade por aí, e Brazil, ainda que não o considere totalmente cínico, estava indo por esse caminho. Eu simplesmente despejei minha raiva e todas as coisas ruins do mundo na tela para tirá-las da minha vida. Mas é necessário muito mais altruísmo no mundo. Do contrário todo mundo vai morrer. Estou supondo que altruísmo é 51% do mundo e os 49% restantes são uma merda. [risos]

Então nós somos mais bons que maus?
Sim, temos que ser. Do contrário não estaríamos todos mortos? 

É bom te ouvir falando isso.
Bom, acho que você tem que acreditar nisso. Quando eu me mudei da América estava tão bravo com o que estava acontecendo no final dos anos 60 que queria começar a jogar bombas. “Tem um bando de merdas por aí que deveriam estar todos mortos.” Então, na verdade, deixei a América porque eu achava que provavelmente seria melhor desenhista do que bombardeador. Segui no que eu era melhor.


Os Bandidos do Tempo (1981)

Você renunciou a sua cidadania norte-americana recentemente, e agora não pode voltar aos EUA por mais do que 30 dias por ano.
Eu me puni por trair o meu país. [risos] Não, fiz isso pois já estou na Inglaterra há 42 anos. Pensei “Vamos lá, para de fingir”. Mas o motivo real—o que pesou—foi que descobri que, quando eu morrer, o fisco norte-americano teria acesso a tudo o que eu possuo no mundo me taxando em 40% ou algo do tipo. Minha esposa teria que literalmente vender nossa casa em Londres para pagar os EUA. Aí eu disse, “Foda-se, é hora de dizer adeus”.

Ouvi dizer que você teve vários problemas na produção de BrazilO Filme e em As Aventuras do Barão de Münchausen.
Fazer filmes é muito difícil. Fizeram mais livros e documentários sobre as minhas dificuldades do que de outras pessoas, então todo mundo acha que pra mim foi mais difícil. Mas não foi isso, na verdade, eu sou só uma figura mais conhecida, e também gosto da ideia de quebrar esse conceito de que fazer filmes é só prazer. No Brazil, quando estava filmando há 12 semanas, percebi que seria um filme de cinco horas e ia estourar o orçamento em milhões. Então parei por duas semanas e arranquei páginas do roteiro. Terminei o filme e a Universal decidiu que não iria lançá-lo. Por sorte eu não tinha um agente de Hollywood para me acalmar, então entrei em guerra e—surpresa!—o filme foi lançado. Ninguém nunca fez o que eu fiz. Comprei um anúncio de página inteira na revista Variety escrito, “Caro presidente da MCA Sidney Sheinberg, quando você vai lançar meu filme Brazil? Assinado: Terry Gilliam”. Isso simplesmente não acontece naquela cidade. Deu muita merda, mas foi divertido demais. [risos]

Você se safa de umas coisas que colocariam outras pessoas na lista negra.
Isso é porque eu não tenho uma carreira. Outras pessoas pensam em termos de carreira, mas, no instante em que você começa a pensar desse jeito, já está ferrado. Eu faço uma coisa de cada vez, e aquela coisa será a mais importante ou mesmo a única coisa na minha vida naquele período. Até que o filme saia, estamos na batalha! [risos]

Brazil é cheio de edifícios imensos que parecem lápides, parecido com aquele do começo de Monty Python: O Sentido da Vida.
Acho que isso veio de morar sem grana em Nova York por muitos anos. O lugar me oprimia, a escala das coisas, com a humanidade parecendo muito pequena em comparação—vivendo e trabalhando nesses grandes prédios monolíticos com todas essas pessoas presas dentro. 

Vamos falar sobre As Aventuras do Barão de Münchausen. Eu amei, mas outras pessoas não.
Eu sei. Mas Münchausen foi reconhecido com o passar dos anos. E quando saiu teve as melhores resenhas que os Estúdios Columbia ti-nham tido desde O Último Imperador. Mas a companhia estava no meio do processo de ser vendida para a Sony, então eles praticamente não lançaram o filme. Colocaram em 52 cinemas e foi só isso que fizeram. É muito difícil avaliar o que teria acontecido se tivesse sido distribuído direito. Foi mais ou menos o meu Soberba, se você é co-nhecedor de Orson Welles. Foi uma reprimenda, porque eu ganhei do sistema com Brazil e o sistema me venceu dessa outra vez. Foi isso que senti de verdade. 

É outro filme cheio de ideias como Os Bandidos do Tempo. É lindo.
A molecada amou esse filme porque parecia um livro de histórias. As crianças saíam do cinema dançando. E os músicos amavam, os artistas amavam, o povo do teatro amava. Eu queria fazer uma série de anúncios porque eu tinha várias citações de gente, como o Pete Townsend do The Who. Ele disse, “Uma puta obra-prima”. George Harrison e todos esses caras estavam entusiasmados com o filme. Saiu uma versão em Blu-ray esse ano, no 20º aniversário do filme. Obviamente o filme foi apreciado por um grande período de tempo. É como um bom vinho—você tem que deixá-lo descansar por alguns anos.

Alguns anos depois saiu O Pescador de Ilusões. Assisti quando tinha 14 anos e não lembro muito dele.
Você tinha a idade errada. Apreciar um filme tem muita a ver com a idade que você tem. O Pescador foi um grande sucesso entre pes-soas de 20 e 30 anos. Era para pessoas apaixonadas ou que queriam se apaixonar.

Quem é o elenco?
É estrelado por Jeff Bridges e Robin Williams. Era um filme do Jeff, mas Robin foi indicado a um Globo de Ouro e ganhou um Oscar pelo filme. Mercedes Ruehl também ganhou Oscar por seu trabalho no filme. Richard LaGravenese escreveu o roteiro e eu achei maravilhoso. Compreendi todos os personagens ali. Era o primeiro roteiro que ele fazia. O estúdio ficou tentando mudar. Mas era como roubar o Santo Graal! Era uma tremenda cagada o que eles queriam fazer. Aí me colocaram a bordo pois sabiam que eu conseguiria o Robin.

E então teve Os 12 Macacos.
Outro grande roteiro. David Peoples foi quem escreveu. Colocamos no circuito dos estúdios porque Bruce Willis e Brad Pitt estavam a bordo. Estávamos gravando no momento em que Brad virou um astro. Estávamos trabalhando e ninguém nos incomodava e aí saiu Lendas da Paixão e a gente tinha que ter seguranças em todos os lugares. Foi algo simplesmente extraordinário de se ver.

Tudo é muito legal naquele filme. Todos os objetos de cena, e as máquinas e aquele tubão que você enfia goela abaixo do Bruce Willis. Os bichos andando pela cidade abandonada. É lindo.
É difícil para mim fazer as coisas parecerem feias, mesmo quando são.[risos] Mesmo que seja um cadáver apodrecendo, eu ainda encontro beleza naquilo. É muito difícil pra mim fazer algo verdadeiramente feio. Em Os 12 Macacos tudo aconteceu suavemente. Foi uma boa oportunidade de ter Bruce e Brad interpretando papéis que eram o contrário do que eles normalmente faziam, e Madeleine Stowe estava simplesmente maravilhosa. Era um filme mais simples, sem um monte de efeitos especiais, mas os bichos correndo pela Filadélfia foi uma coisa muito divertida.

E agora você tem outro filme sendo lançado chamado The Imaginarium of Doctor Parnassus.
Espera, você pulou Tideland. Você assistiu Tideland?

Não. Desculpe mas não assisti.
OK, vá ver Tideland em primeiro lugar como punição. É um filme que divide opiniões. Tem gente que fica tão brava com esse filme. E quando essas pessoas ficam bravas elas não saem gritando—elas fingem que aquilo nunca aconteceu. [risos]

Também não falei de Medo e Delírio, nem de Os Irmãos Grimm.
Esses são clássicos de suas épocas e serão descobertos um dia. Veremos, se vivermos o suficiente.

Mas espera aí—o que você acha de Tideland?
Eu acho ótimo. Maravilhoso. Estava fazendo algo que achei que poderia gerar controvérsia, ou polêmica—colocando uma menina tão jovem no que poderia ser considerado arriscado, em uma expe-riência estranha e perturbadora. Imaginei que as pessoas fossem berrar, mas não. Pensei, “Meu Deus, o que aconteceu com a sociedade que não fica brava com algo que vale a discussão?”. Foi isso que me desapontou com Tideland.

Você quer me contar alguma coisa sobre o seu novo filme?
Bom, acabei de ir à convenção de quadrinhos Comic-Con e contei para 4.000 pessoas como ele vai fazer a vida delas valer a pena. 

“Descola dez paus se não quiser morrer.”
É isso aí. Não me descole drogas, me descole dinheiro. E tanta gente saiu de sessões desse filme dizendo,“Nossa, eu ainda estou viajando”. Isso me leva de volta ao meu argumento sobre altruísmo e amor no mundo. Heath Ledger morreu no meio das filmagens e, no que diz respeito a mim, não tinha como a gente continuar sem ele. Mas eu estava cercado por pessoas que não queriam desistir, que diziam que o filme tinha que continuar, que tínhamos que terminar por causa do Heath e de todo mundo. Eu liguei pro Johnny Depp e ele disse: “O que você precisar de mim, estou aqui”. Aí conseguimos o Jude Law e o Colin Farrell. Eles todos vieram e fizeram a parte do Heath. Nós acabamos com outros três atores para terminar o papel que Heath começou. Acho que isso diz muito a respeito do amor e da bondade.

E a respeito de ser capaz de enxergar além do fracasso que passou e continuar seguindo em frente e improvisando.
Sim. Eu estava desistindo quando minha filha, que era minha produtora no filme, disse, “Não, você não vai sair dessa tão fácil. Volte ao trabalho”. E isso é a coisa boa dos filmes: eles sempre tem uma qualidade mágica. E isso salvou o dia. 

Queria agradecer por ter sido uma inspiração na minha adolescência, e muito obrigado por me inspirar agora. Foi muito bom conversar sobre esperança e arte.
Acho que essas duas coisas andam juntas. É isso que é criatividade. Continuar reinventando o mundo, continuar fazendo dele um lugar onde vale a pena viver—mesmo que seja só por você mesmo.

Estamos todos juntos nessa.
Eu sei. [risos] Eu amo isso. 

Vá ao VBS.TV para mais Terry Gilliam.

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