Gee Vaucher fala sobre o Crass, arte e contracultura

Gee Vaucher com obras da série “Children Who Have Seen Too Much”. (© Gee Vaucher, cortesia da Firstsite.)

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE UK.

Bem a tempo do apocalipse gêmeo de uma presidência de Trump e um difícil Brexit, a artista e ex-membro do Crass Gee Vaucher montou uma retrospectiva de suas obras de confronto e politicamente carregadas, cobrindo seus 50 anos de carreira.

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Em exposição na galeria Firstsite em Colchester, Gee Vaucher: Instrospective, começa com obras do início dos anos 60 e incluem suas pinturas e desenhos mais recentes, além de obras fotográficas e de som feita nos anos 70 em Nova York, cidade na qual Vaucher atuou como cartunista política desenhando para o New York Times e New York Magazine.

A retrospectiva inclui colagens, pinturas, vídeos, esculturas, impressões, desenhos e fotografias, cada obra revelando sua estética única; um amálgama de surrealismo, pop arte e dadaísmo muitas vezes executadas com a urgência DIY que ela usou para moldar o que todo mundo reconhece hoje como a “estética punk” clássica.

A capa do disco do Crass The Feeding of the Five Thousand. (© Gee Vaucher, cortesia da Firstsite.)

A exposição inclui as obras icônicas que Vaucher criou para a famosa banda punk anarcopacifista de comuna Crass, da qual ela foi membro. O Crass tinha uma coisinha ou duas para dizer sobre autoritarismo, a direita e líderes belicoso e isolacionistas, e com Gee no leme da maioria das empreitadas não-musicais, eles encontraram algumas maneiras criativas de mostrarem seu ponto. Os discos do Crass são fantásticos e poderoso em si, mas as ações extracurriculares da banda podiam ser consideradas um tipo muito malicioso de arte performática.

Por exemplo, durante o final da Guerra das Malvinas em 1982, o Crass usou trechos de discursos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan para montar o que até hoje parece uma conversa por telefone verdadeira entre os líderes. Eles mandaram fitas da conversa falsa para a imprensa do mundo todo, o que resultou numa polêmica genial.

Na fita, Reagan aparece dizendo que quer usar a Europa como campo de batalha para mostrar aos líderes da União Soviética a resolução dos EUA durante uma possível guerra nuclear, e Thatcher admiti que o HMS Sheffield foi deliberadamente sacrificado para incentivar a Guerra das Malvinas. A imprensa demorou um pouco para chegar ao fundo da história — a fita era tão convincente que várias perguntas surgiram e o caso apareceu em vários jornais do mundo. Até os serviços de inteligência achavam que a União Soviética ou a Argentina estavam por trás da fita. O Crass levava a sério sua “culture jamming”, então imagine do que eles seriam capazes se estivessem na ativa hoje. Você pode ouvir a fita aqui.

International Anthem No. 2, Domestic Violence, 1979. (© Gee Vaucher, cortesia da Firstsite.)

Apesar de a própria Gee, compreensivelmente, ser contra rotular seu trabalho, é difícil não chamar muitas de suas obras de “arte de protesto”, assim como não ver a relevância dessas obras no bizarro clima geopolítico atual.

Fiz algumas perguntas a Gee sobre seu trabalho e sua vida, que ela respondeu com franqueza e sucintamente. Leia a entrevista abaixo.

VICE: Você está fazendo uma exposição/retrospectiva da sua carreira — por que agora?
Gee Vaucher: O que é uma retrospectiva de carreira? Não tenho uma carreira. Me ofereceram um espaço e aceitei. Só tirei tudo que eu tinha guardado nos armários e gavetas.

Você disse que sua politização começou com o desastre de Aberfan em 1966. Você fazia arte antes disso?
Sim. Desenhos de natureza morta, retratos, família, vida nas ruas, etc. Tem um autorretrato de 1962 na exposição.

Tenho a sensação de que seu trabalho é criado muito longe do mundo da arte, mas, ao mesmo tempo, ele não poderia ser chamado de arte outsider. Você se vê como uma “artista profissional”?
Não sei o que é um artista profissional.

O que você acha do mundo das artes hoje?
O mesmo que ontem. Tem coisas boas, ruins e loucas.

Alguns dos seus trabalhos no passado envolviam performance — você tem feito alguma performance desde então? Gostaria de fazer de novo?
Uso qualquer coisa para dizer o que quero dizer, então quem sabe.

Contando tudo agora: sou muito fã do Crass — sua banda é muito especial para mim e abriu meus olhos para várias coisas de que eu não teria consciência se não fosse o Crass, então eu queria te agradecer por tudo isso. Você se sente frustrada ou entediada de ouvir coisas assim, já que o Crass acabou mais de 30 anos atrás? Ou se sente reconfortada porque as pessoas ainda acham que o que a banda disse e fez é poderoso?
Me sinto sempre honrada quando alguém expressa sua gratidão ao Crass. Ter dado uma mão para tantos é uma honra para mim. E sim, a gratidão continua e, para alguns, o Crass não tem 30 anos, mas acabou de ser descoberto. Infelizmente o mundo não mudou muito e as palavras, a música e as imagens ainda ressoam.

O pôster interno do single do Crass Bloody Revolutions de 1980. (© Gee Vaucher, cortesia da Firstsite.)

Seu trabalho é sinônimo do que poderia ser chamado no geral de contracultura. Graças à internet, a contracultura agora é tão acessível quando o mainstream. Isso te empolga?
Ainda estou tentando entender a internet, como muita gente de certa idade. Fico impressionada e empolgada com a possibilidade de trocar informações, mas me irrito um pouco com o jeito que o mundo digital tomou a vida das pessoas, principalmente o celular. Não consigo pegar todas essas coisas que são jogadas em mim e deixar o velho para trás completamente. Os dois mundos podem informar e equilibrar um ao outro.

Tem algum esforço de contracultura hoje que te impressiona?
Tenho certeza que encontraria se procurasse, mas não sou boa em “surfar” em nenhum dos sentidos da palavra.

De que trabalho você tem mais orgulho?
Orgulho é uma palavra estranha. Tem muitos trabalhos que fiz e nunca me canso de olhar. Se consigo me afastar um pouco deles, esqueço que fui eu que fiz. Essa é uma sensação ótima. Estou muito feliz de ter produzido a série “Children“.

Inside Out, 2010. (© Gee Vaucher, cortesia da Firstsite.)

Considerando os eventos globais e nacionais da atualidade — principalmente a eleição de Trump — é possível dizer que muitos progressos sociais estão retrocedendo. Qual você acha que é a melhor maneira de abordar isso para jovens artistas e músicos? Uma confrontação direta dos eventos, ou uma abordagem mais geral, tipo “deixando a política de lado, vamos ser legais uns com os outros”?
Não faço a menor ideia. Eles devem olhar para dentro de si.

Sinto que seu trabalho tem um pouco dessas duas coisas. O que você acha que é mais eficiente hoje?
Não faço ideia — não trabalho para conseguir um efeito.

Você é otimista com o futuro? O seu trabalho é otimista com o futuro?
Eu amo hoje.

Gee Vaucher: Introspective vai de 12 de novembro a 19 de fevereiro de 2017 na galeria Firstsite, Colchester, Inglaterra.

@bobfoster83

Tradução: Marina Schnoor

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