O pastor progressista

Marco Feliciano, Silas Malafaia, Marcelo Crivella. O que esses homens têm em comum com Ariovaldo Ramos é o fato de todos serem pastores evangélicos. Algumas diferenças, porém, os põem em posições opostas. O paulistano de 62 anos, que conheci na sede da Visão Mundial Brasil, organização da qual é presidente do conselho nacional, é a favor do estado absolutamente laico, da liberdade religiosa, do respeito à luta das mulheres e homossexuais, da valorização do trabalhador e da reparação histórica a negros e indígenas. Ele defende, inclusive, uma política mais liberal em relação às drogas e ao aborto.

Resumindo: o pastor batista é mais progressista do que muita gente que você conhece. Ele explica que pensa como pensa justamente por causa da Bíblia: “Lá está escrito que todos somos iguais perante a Deus. E todos não são alguns. Todos são todos”.

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Suas opiniões já lhe valeram tretas com alas evangélicas mais radicais. Mas também houve embates com os próprios esquerdistas. Em suas palavras, a esquerda muitas vezes é incapaz de reconhecer um aliado quando topa com um, e pode ser tão preconceituosa como qualquer líder da Bancada Evangélica na Câmara.

“A gente apanha do pessoal com inclinação fascista e os progressistas dizem ser impossível que quem acredita em Deus seja progressista. Ficamos num sanduíche. Tomás de Aquino já advertia: os extremos se encontram. Quando os extremos se encontram, há fundamentalismo de todo lado. E com fundamentalista não dá para conversar”, afirma Ariovaldo.

“A esquerda muitas vezes é incapaz de reconhecer um aliado quando topa com um, e pode ser tão preconceituosa como qualquer líder da Bancada Evangélica na Câmara.”

Ainda assim, o pastor não enfrenta problema algum por suas opiniões dentro da igreja Batista. Um dos cânones da religião criada por ingleses no século 17 é a liberdade individual de pensamento. Preceito que Ariovaldo usa muito bem.

Acreditar, no entanto, que o pastor seria progressista em todos os campos foi um erro. Em sua fé ele é extremamente conservador. A Bíblia é seu norte. É por causa do livro sagrado que se tornou progressista.

“É justamente a Bíblia que me leva a tomar partido de ações libertadoras. É a Bíblia que me leva a reconhecer que a dignidade do ser humano é um fator imperativo em qualquer decisão. É a Bíblia que me leva a reconhecer a igualdade de gênero e dos direitos civis. Tudo o que se tem na era moderna, no que diz respeito aos direitos adquiridos, vem do movimento cristão”, explica.

Ariovaldo é também sabedor de uma verdade simples e irrefutável: ele é um cristão conservador, mas ninguém é obrigado a ser. O estado é laico. E assim deve permanecer, diz ele.

“O ser humano tem o direito a fé, mas não tem o direito de impor a religião. Alguns acham que um ser humano para ser digno precisa ser alguma coisa além de ser humano. O ser humano é digno por existir. Como ele prefere existir, desde que a forma de existência não ameace a existência de outrem, é problema dele”, afirma.

“É a Bíblia que me leva a reconhecer a igualdade de gênero e dos direitos civis.”

Para Ariovaldo, qualquer imposição religiosa é criminosa. Em suas palavras, toda vez que qualquer religião ganha contornos hegemônicos vira um perigo para a coletividade. Destaca que é impossível parar um sujeito que decide fazer alguma coisa em nome de Deus, inclusive matar e morrer. “A religião deve ser vivida dentro de sua atmosfera”.

Direitos LGBT, aborto e drogas

Sobre a questão dos homossexuais, por exemplo, ele deixa claro que toda religião tem direito
a ter seus próprios dogmas e preceitos, pode considerar que seja um pecado, e deve ficar dentro da religião quem se sentir confortável com suas regras. Mas, ao mesmo tempo, diz que a fé não pode incidir sobre o estado, como o estado não pode incidir sobre a fé.

Sob essa visão, afirma que os LGBTs têm o direito de pedir proteção estatal proporcional ao risco que julgam correr, e é um dever do estado protegê-los. “Todo grupo ou movimento tem o direito de postular seus direitos civis quando se entendem molestados ou desrespeitados”.

O assunto do aborto — sempre tão controverso — é tratado de forma natural por Ariovaldo. Ele se diz contrário por definição. Mas que nem o Estado e nenhum líder religioso deveria fechar os olhos ao que acontece especialmente às mulheres pobres e periféricas do Brasil. “Há um montão de meninas sendo mortas por verdadeiros açougueiros, com perdão aos trabalhadores de açougues. Nós estamos assistindo a assassinatos, principalmente de mulheres empobrecidas, com a anuência do estado e de lideranças religiosas”.

Ele propõe um pacto social para ajudar as mulheres a tomar a decisão de ter ou não ter o filho com liberdade. “[o aborto] Não é uma realidade como eu gostaria, mas como está posta. O estado não pode fingir que não vê. E os pastores, padres, pais de santo também não deveriam lavar as mãos. É um problema de saúde”.

Se tende a ser liberal sobre o aborto, Ariovalo mantém a mesma visão em relação à política de combate às drogas. Para ele, o modelo brasileiro, inspirado no norte-americano, se tornou apenas “uma política de proliferação de penitenciárias”, sem resolver o problema.

“Deveríamos ver como os escandinavos estão tratando a questão [das drogas]. Eles estão se saindo melhor que os Estados Unidos que construíram uma pátria-prisão. O que podemos aprender com eles? Fora o jazz, que eu gosto demais, não ando vendo nada de muito interessante por lá mais, não”.

Comunismo

Para o pastor, os cristãos criaram a primeira experiência semelhante ao comunismo de que se tem notícia. Ele está falando sobre a primeira igreja cristã fundada logo após o que acreditavam ser a morte e ressurreição de Cristo, uns 2000 anos atrás. Todas as tarefas ali eram realizadas em comunhão e igualdade.

Os cristãos teriam criado, também, explica ele, o primeiro movimento em que homens e mulheres votaram livremente, em Jerusalém, quando foram escolhidos os diáconos para resolver as injustiças sociais impostas aos religiosos.

Por tudo isso, o pastor fica bravo com o preconceito de alguns esquerdistas contra os que têm fé. Já ouviu algumas vezes que “é impossível alguém que segue a Bíblia ser progressista”. A sua resposta costuma ser a mesma: “Que livros você acha que Marx, Engels e os outros intelectuais leram? Que livro você acha que formou o Ocidente?”.

“Eu quero conversar com o sujeito, dizer ‘estamos juntos, acreditamos em justiça social, queremos uma nação justa’, e costumo ouvir: ‘Ah, não, vocês são crentes’; ‘e vocês são o quê?’, pergunto. Não acreditar em Deus é uma forma de ser crente também. Há milhares de cristãos progressistas pelo País que sofrem o mesmo.”

O toque aos esquerdistas é só um alerta. O pastor sabe que o grande inimigo é outro: o crescimento do pensamento conservador no país. “Esse é um golpe da elite branca nacional. Não tem ninguém mais subdesenvolvido no planeta que esse pessoal que se julga a elite brasileira. Eles ainda não entenderam que se não houver nação para todo mundo não vai haver nação para ninguém”.

Direito dos trabalhadores

O pastor acredita que as ações do presidente Michel Temer serão especialmente cruéis com os moradores das periferias brasileiras. “Nós não podemos aceitar a reconstrução de uma senzala que ainda não terminamos de derrubar”, afirma.

Negro e nascido na periferia, Ariovaldo lamenta que o Brasil seja um dos países que mais mata jovens negros no mundo. De acordo com uma CPI no Senado, por ano são assassinados 23.100 pretos e pardos entre 15 e 29 anos no Brasil. São 63 por dia. Um a cada 23 minutos.

“Marx já falava de mais-valia há muito tempo. A lógica é essa aí mesmo: você ganha nas costas dos outros. Quem produz riqueza é o trabalhador. E a Bíblia é muito clara: o trabalhador deve ser o primeiro a usufruir dos frutos do seu trabalho”.

Ele lembra que mais de 60% dos jovens abordados em batidas policiais nunca tiveram uma passagem sequer pela polícia. São parados e, em alguns casos, agredidos ou mortos pela cor da pele e pelo local onde vivem. 

Ariovaldo é defensor das cotas raciais em universidades públicas. O Estado brasileiro tem um débito por 380 anos de trabalhos forçados, desrespeitos e violações de toda sorte, explica ele.

Também se revolta contra o que considera retiradas de direitos sociais promovidas por Temer, principalmente a ampliação da terceirização e a flexibilização da CLT. “Marx já falava de mais-valia há muito tempo. Até onde eu sei, não houve nenhuma outra tese que conseguiu quebrar essa lógica. A lógica é essa aí mesmo: você ganha nas costas dos outros. Quem produz riqueza é o trabalhador. E a Bíblia é muito clara: o trabalhador deve ser o primeiro a usufruir dos frutos do seu trabalho”.

O pastor também se opõe à reforma do ensino médio, o que, para ele, não é uma reforma educacional, mas um “adestramento de jovens”. E, claro, é contra o projeto conhecido como “escola sem partido”. “Escola sem discussão, sem abordagem de todas as questões relevantes do pensamento humano, não é escola, é exatamente a ausência da escola. É para criar escravos mal remunerados”.

Capitalismo

Se há algo que irrita Ariovaldo é a “filantropia barata” promovida pelos poderosos para parecer boazinha, para parecer caridosa. Como exemplo, destacou que o prefeito de São Paulo, João Doria Jr., pediu a grandes laboratórios para doarem remédios às farmácias populares da capital.

“É um absurdo que foi cantado a verso e prosa. É filantropia e paternalismo. Os remédios não têm de estar nas farmácias populares porque os senhores da farmácia tiveram um ato de benemerência. Tem que estar lá por direito do cidadão e dever do estado. Não quero a elite se pintando de boazinha”.

“As pessoas vão aplaudindo porque estamos sendo convencidos que o capitalismo é natural e que a elite é absolutamente benfeitora, que só vai haver progresso se houver uma elite capaz de gerar empregos, de se doar. Isso é um acinte, é uma vergonha, é a negação do direito do ser humano. O capitalismo é um sistema de concentração de renda. É um sistema por definição injusto”.

Para Ariovaldo, parte da saída passa pela busca da diminuição das desigualdades sociais, proteção do trabalhador e de mercados locais. “Todo mundo trabalha, todo mundo gera riqueza, todo mundo tem direito ao acesso à riqueza que produz”. 

O pastor, por sua vez, conta que não tem salário algum para realizar suas atividades e cultos. Suas ações são custeadas por doações e pelo tão conhecido dízimo — e ele conta que em suas pregações dá o dízimo quem quiser. “Dízimo é um culto de gratidão oferecido por cristão, que é totalmente voluntário e auditado, em toda comunidade que prima pela seriedade e ética’, explica.

O pastor é, também, um dos articuladores da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, movimento que reúne milhares de cristãos em vários estados do Brasil contra o governo de Michel Temer. Porém, faz questão de deixar algo claro: “Não tenho pretensão político-partidária alguma”.

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