“Uma novela de verdade”, anunciava a MTV Brasil em 1997 ao apresentar o Na Real, o primeiro reality show a ser exibido no país. Na televisão, víamos jovens gringos desconhecidos vivendo juntos em uma casa. Brigas, choradeiras, virgindade, drogas, sexo, gravidez, aborto, HIV. Parecia mesmo uma novela. Cinco anos depois, a Rede Globo apresentou o Big Brother Brasil pela primeira vez. O projeto, importado da TV holandesa e que vai anualmente ao ar durante três meses, sobrevive há 17 anos.
Curiosamente, a edição deste ano traz, entre outras peculiaridades, Pedro Falcão, editor de games da VICE. Cabeludo e de óculos nerd, o jornalista já foi enxovalhado nas redes sociais por reaças e também por parte do movimento feminista e LGBT pelo fato de ser homem e vez ou outra usar saia e vestido. Entre os habitantes da casa do BBB, Pedro não sofreu represália alguma. No entanto, acusações de “macho esquerdista desconstruído que só usa vestido pra comer minas” pipocam no tribunal da rede mundial de computadores.
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Quando o Big Brother chegou ao Brasil, era difícil imaginar que seu formato de reality show fosse capaz de sobreviver a tantas temporadas. Nenhuma outra experiência de reality na TV brasileira conseguiu manter a mesma invencibilidade e valor de produto como essa. Vide o sumiço de semelhantes como Casa dos Artistas (SBT), 20 e Poucos Anos (MTV), e No Limite (Globo). Quem viver, verá até onde pode chegar o blockbuster mais recente, o MasterChef Brasil.
“É possível falar que há uma tentativa da Globo em agradar as mídias sociais”, afirma o crítico de TV Daniel Castro
Várias teorias podem tentar explicar o êxito, e a hegemônica inteligência tática da Globo ao abraçar tendências não pode ser desconsiderada. Segundo o crítico de TV Daniel Castro, “é possível falar que há uma tentativa da Globo em agradar as mídias sociais, até porque o reality show é um gênero que ativa muito as redes. É o que mais ativa, dos gêneros televisivos”. Mas ele observa também que, “além da tentativa de agradar, existe uma tentativa de renovar. O Big Brother já está aí há 17 temporadas no ar, então precisa mudar. Com a troca de apresentador [agora com Tiago Leifert] e a escolha do elenco desse ano acho que procurou-se dar uma rejuvenescida. Embora também tenha a participante de 70 anos, dessa vez é a ‘idosa gata’. Ela é bonita, e tem uma flexibilidade corporal que muita menina de 20 anos não tem”.
Para além de qualquer jogada de psicologia coletiva, marketing, patrocínio ou propaganda, é importante notar que grande parte desse sucesso pode estar no conceito velado de que o BBB, embora seja vendido como um canal que nos coloca na condição de observadores, acaba por ser, sobretudo, também um espelho. Se não funcionasse como uma via de mão dupla, estaria condenado ao fracasso, ou a um grau menor de influência, a exemplo d’ A Fazenda.
Os tipos escolhidos refletem, a cada temporada, de acordo com a onda do momento, caricaturas das discussões ou interesses genericamente em alta entre nós. Mais ou menos assim: aqueles que não me representam nem um pouco, eu condeno e elimino no paredão, e isso me faz bem. Nisso encontra-se o atual sucesso do BBB, mesmo sem a empatia criada pelas crônicas cafonas do Pedro Bial. Igualmente acontece nas novelas. A diferença é que, aqui, esses personagens são buscados na vida real, ao invés de serem construídos.
“Não há militância, e sim gente muito diferente entre si e para nós”, sugere Alessandra Siedschlag, criadora do blog Te dou um dado
Tudo isso é pra arriscar a tese de que, na seleção da temporada 17, temos um reflexo dos principais #TrendTopics pipocando nas mídias sociais. É claro que os representantes do velho clichê maromba-fit e da pegação regada a vodca sempre estarão por lá. Mas dá pra sacar também que o BBB, acompanhando a sua geração, vem abrindo cada vez mais espaço para as representações de pluralidade vistas nas redes. Coisa que hoje encontra muito mais eco na cultura da televisão aberta do que no passado. E, ao mesmo tempo, causa menos estranhamento no convívio da casa.
Então, além da turma composta pelos gêmeos e gêmeas (Emilly e Mayla – eliminada; e Manoel e Antônio – eliminado), a miss (Vivian – no paredão), a advogada (Mayara – no paredão desta terça, 7), o comerciante (Luiz Felipe) e o médico (Marcos), personagens com características corriqueiras de folhetim, temos o foco voltado para diferentes problematizações do momento nos ambientes digitais.
Os trabalhadores comuns, preservando aquela ideia do brasileiro batalhador que vencerá a crise (Daniel e Elis); os galãs de humanas (Ilmar, Rômulo e Pedro), para mostrar que nem todo intelectual é freak; a bailarina blasé que se apresentava como autossuficiente (Gabriela Flor, eliminada no primeiro paredão), mas que na verdade mostrou-se frágil e emotiva; a idosa gata e vivona (Ieda), indicando que velhice é só um estado mental; a gorda empoderada que aceita seu corpo (Roberta); a paratleta (Marinalva), frisando que não quer ser tratada como incapaz; e o hétero que curte usar vestido só porque acha daora (Pedro), transcendendo as questões da homofobia e da sexualidade já abordadas em outras edições para um mergulho nas definições estéticas do gênero.
É claro que os representantes do velho clichê maromba-fit e da pegação regada a vodca sempre estarão por lá.
“A novidade é realmente que eles foram buscar personagens nas redes sociais. Eles fizeram essa busca. A Globo faz pesquisa periódica, não só pra reality show e novela, mas para o jornalismo”, comenta Daniel Castro. “Não há informação precisa de uma pesquisa que tenha indicado a necessidade de personagens como uns gêmeos bem idiotas, mas eu tenho conhecimento de pesquisas que a Globo faz e que determinam em que tipo de repórter se deve investir. A Globo deu uma informalizada no jornalismo, parou com aquele padrão de só gente muito bonita porque o Brasil não é assim. E as pessoas querem se ver na TV. Mas com certeza nada por lá é feito empiricamente. Ela tem uma estrutura de pesquisa muito grande e trabalha muito bem isso”, conclui.
GORDOFOBIA, EMPODERAMENTO, FEMINEJO, FEMINISTOS, “FORA, TEMER” E “VOLTA, DILMA”
Roberta, que é estudante de serviço social, youtuber, negra e empoderada, votou no advogado Ilmar no primeiro paredão porque ele teria dito que algo “era coisa de gorda”. Já as melhores amigas Vivian e Mayara, primeiras líderes da edição, mandaram o gaúcho Marcos direto para o paredão. Ambas justificaram que o médico era desrespeitoso com as mulheres da casa, chegando junto de todas elas durante as festas e comentando que daqui a três meses seria possível vê-las peladas. Problemático ver um cirurgião plástico, que dedica seus dias a tirar gorduras da bunda alheia e colocar próteses de silicone, objetificando suas companheiras de casa? Por mais que Mayara tenha reconsiderado seu julgamento – “Será que eu errei?”, disse ela, passada com o retorno do Marcos -, e do fato de que ele conseguiu se reaproximar das mulheres na volta do paredão, o questionamento permanece de modo fantasmagórico no ar.
O doutor tentou dar um beijo à força na gêmea que se manteve no programa, Emily. Outro dia, numa conversa com as amigas da casa, ela disse que estava acostumada com esse tipo de atitude masculina. E que isso não a impediria de continuar amiga de Marcos.
As BFFs Vivian e Mayara não representam o feminismo da internet, mas, talvez, o feminejo, gênero musical encabeçado por cantoras de sertanejo universitário tal qual Maiara & Maraisa, Simone & Simaria e Naiara Azevedo – artistas que levaram o tal empoderamento feminino para outra esfera. Apesar de negar o rótulo de feminista, essa mulherada começou a impor, através da música, que, sim, elas bebem, fazem sexo livremente, usam roupas curtas e sofrem por amor, mas não dependem de homem nenhum pelo fato de serem mulheres.
Chamado de feministo (apelido pejorativo para homens que querem opinar sobre o feminismo) e esquerdomacho, Pedro e sua coleção de vestidos dividiram opiniões.
Chamado de feministo (apelido pejorativo para homens que querem opinar sobre o feminismo) e esquerdomacho, Pedro e sua coleção de vestidos cafonas dividiram opiniões. Alguns até elogiaram, mas muitas mulheres reclamaram principalmente depois que ele afirmou ter sentido “a carga que isso representava”. Referência quando o quesito é história da moda, João Braga, docente da FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado) não assiste ao reality show, mas topou comentar, sob um viés histórico, a polêmica em torno de homens que usam saia ou vestido. “A menor carga é a política. Pode ser que tenha, mas depende da intenção de cada um”, pontuou. Ele explica que o homem sempre se enfeitou mais do que as mulheres. Fosse com brincos, maquiagem, colares. E os vestidos, saias e saiotes, como eram chamados, só desapareceram dos armários masculinos com a Revolução Industrial, no século 19, quando a calça parecia mais prática para o homem que ia trabalhar. “Nos anos 80, há uma inversão de valores com a moda yuppie. A mulher passou a se vestir de terninho, usar ombreira, calça comprida. Armani foi o grande ícone da moda desse período.”
Entre as diversas reviravoltas da humanidade e suas peças de roupa, Braga aponta que o emo contribuiu para a igualdade de gênero. “Quem era menino e quem era menina?”, questiona. “Isso tudo foi dando uma liberdade de comportamento que chegou hoje em dia nesta moda agênero, uma moda que não tem sexo.”
A feminista Carla Lemos, que há nove anos comanda o site Modices, supõe que a questão seja simbólica. “Acho que o que incomoda é o homem usando símbolos que foram impostos às mulheres pela sociedade patriarcal”, fala. “Historicamente, os homens sempre usaram saias e vestidos/túnicas, como ainda o fazem em algumas culturas. O próprio salto alto foi criado pros homens. Mas quando esses elementos começam a ser impostos pela sociedade para as mulheres como símbolo de feminilidade as coisas ficam mais complicadas.”
Carla cita o escândalo provocado pelo código de vestimenta da equipe de governo de Donald Trump, nos EUA, que teria dito para mulheres “se vestirem como mulheres”, pressionando-as a usar vestidos no melhor estilo “bela, recatada e do lar”. Mais uma vez a mulherada se indignou nas redes sociais e surgiu a hashtag #DressLikeAWoman, mostrando ao presidente como elas querem e devem se vestir de verdade.
“Acho que a gente ainda tem muita desconstrução a fazer pra que boys e minas tenham o mesmo respeito social pra usar a roupa que quiserem”, sugere a blogueira.
Também conhecido como Mamão, o advogado e cozinheiro Ilmar traz uma tatuagem de Che Guevara nas costas e já atuou como militante do Partido dos Trabalhadores (PT). Abraçado ao médico Marcos durante o castigo do monstro (quando dois participantes são obrigados a passar 24 horas com alguma fantasia tosca), Mamão grita “Fora, Temer”, enquanto o doutor responde “Volta, Dilma”. Obviamente isso não foi ao ar, mas apareceu no pay-per-view.
UMA QUESTÃO DE AFINIDADE COM A TAL INTERNET
A jornada de existência do Grande Irmão é sustentada na ousadia em atuar na convergência das mídias, já que a segunda tela é uma nova realidade e o sofá de casa também está na internet. Estratégia perfeita para moldar o programa de um jeito que o buzz saia da televisão e se espalhe na rede.
Alessandra Siedschlag, criadora da página Te dou um dado, editora e ex-colunista do portal R7 que acompanha o Big Brother nos lembra que “o público ficou mais velho”, e que esse formato mais jovial e midiático “tenha sido apenas pra causar mesmo, ver o que rola com tanta gente diferente”. Para ela, “não há militância, e sim gente muito diferente entre si e para nós”.
Optar por uma relação mais simpática com o público permite que o estilo de interação não se limite apenas às ligações nas decisões de eliminação no programa, mas que se assemelhe com a linguagem daquilo que ele está acostumado: o da internet. Não é à toa que este ano foi criada a Rede BBB, canal interativo que promove mesa redonda com os recém ex-participantes, bate-papos e vigias esporádicas na casa.
Alessandra comenta que essa nova interatividade vem rolando “há um ano ou dois” e que essa participação “direciona inclusive os votos. Por causa do fenômeno do Twitter.” Esse novo formato dá a entender que além da aproximação com o pessoal de casa, há um papel fantasioso em deixar o programa com cara de internet, mesmo para quem não está acostumado, como o público mais velho.
OS DIFERENTÕES MEIO QUE SEMPRE EXISTIRAM NO BBB
Do extinto Fotolog e das baladas gays alternativas de São Paulo, o paulistano Serginho Orgastic pulou para o BBB10 com sobrancelha feita, salto alto, chapinha na franja e maquiagem. O estranhamento não foi total por parte do público, já que tais atitudes soam mais “toleráveis” quando surgem de um homem gay. No ano seguinte, o BBB11 levou para dentro da casa a primeira participante trans, a cabeleireira Ariadna, que surpreendeu os próprios brothers, uma vez que sua identidade de gênero não foi revelada aos outros participantes.
Ariadna, que ficou só uma semana no programa, revelou ser a primeira transexual do reality. Na mesma edição, o maquiador e drag queen Dicésar também era um dos diferentões. No BBB12, Mayara Medeiros virou assunto na imprensa por ser produtora de filmes pornográficos. Em 2014, a vencedora foi Vanessa Mesquita, que, no programa, fez par romântico com a stripper Clara Aguilar. Em 2016, o tatuador cinquentão Laércio de Moura se deu mal depois de declarar dentro da casa que gostava de novinhas e que já havia utilizado bebidas alcoólicas para se aproximar delas.
Em seu perfil nas redes sociais, o sujeito de barba colorida atestava seu gosto por armas, supremacia branca e declarou ser um “ebófilo” (indivíduo que tem atração sexual por adolescentes) – o que provocou ainda mais a ira do público. Laércio acabou preso por estupro de vulnerável e por fornecer bebidas alcoólicas para menores de idade.
Ou seja, os diferentões sempre renderam polêmicas boas e ruins para a Globo e seu BBB. Não é de se estranhar que a edição atual tenha investido com mais peso em perfis tão diversos.
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