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Entrevista

Comi cachupa com o Bilan

E fiz um amigo novo.

"Apresento-te a cachupa." Com o Verão da Casa da Música, o que não falta para aí é uma variedade imensa de concertos. E, como me dou bem com variedade, decidi explorar um pouco mais as músicas do mundo — fui falar com o Bilan, um autor de origem cabo-verdiana que vai lá tocar hoje à noite. O Bilan nasceu na ilha de São Vicente, mas há 14 anos que vive no Porto, para onde veio estudar e onde acabou a fazer música. Apesar de agora estar ligado à chamada world music, já houve uma altura em que tocava rock alternativo numa banda chamada Freak. O primeiro instrumento que tocou foi uma bateria improvisada com baldes de tinta. Quis conhecê-lo, tentar perceber de onde é que ele vem e como é que isso influencia a sua música. E que melhor maneira para fazê-lo do que à mesa? Combinámos, por isso, um jantar no restaurante cabo-verdiano Novo Ambiente ou (como algumas pessoas lhe chamam) no Dona Iva, o nome da proprietária que passou a identificar o espaço entre os clientes habituais. Como não sabia nada sobre a cultura cabo-verdiana, pedi ao Bilan para ser ele a escolher a comida. De entrada, comemos pastéis de midje de atum, que são uma espécie de cruzamento entre um folhado e um rissol, feitos com farinha de trigo e depois fritos. E como prato principal veio a cachupa, um prato de feijão, milho e couve, que foi servido com um ovo estrelado por cima, que, na verdade, disse-me o Bilan, costuma servir-se ao pequeno-almoço, com café e leite. VICE: Por que é que escolheste este prato?
Bilan: Podia ter escolhido uma coisa diferente, mas a culinária cabo-verdiana é muito parecida com a portuguesa. A cachupa é aquele prato mais conhecido de Cabo Verde, tipo o bacalhau para Portugal. É universal, é um prato a que todas as famílias têm acesso. E como disseste que nunca tinhas comido, é da maneira que ficas com a base da culinária cabo-verdiana. Mas disseste-me que se come ao pequeno-almoço, o que achei curioso. Suponho que em Cabo Verde não se coma exactamente como aqui em Portugal…
Pois, em Cabo Verde não é costume as pessoas jantarem. Comem um bom pequeno-almoço, um bom almoço e depois à noite fazem um lanche, sempre com um chazinho de alecrim, de hortelã, ou erva-príncipe. É um hábito muito vicentino, que nos ficou dos ingleses. Cabo Verde é uma mesclagem intensa, há a mistura africana com a europeia, com os portugueses, os franceses… Na minha ilha sempre houve uma presença inglesa muito forte. Mesmo nas bebidas: um gin tónico ou um whiskey com uma água com gás são coisas muito inglesas e em Cabo Verde encontras muito esses hábitos, tanto europeus como africanos, que tornam o arquipélago muito interessante até na própria música. Por isso é que eu aos 17 anos tinha uma banda de rock alternativo, tranquilamente. Estava a viver Seattle na minha ilha: tinha posters do Kurt Cobain, dos Pearl Jam, ouvia Sonic Youth. E até na forma de vestir, com as camisas aos quadrados, o andar com o walkman de cassetes a ouvir essas bandas e um cota ao teu lado a ouvir a sua morna, a sua mazurca. Importávamos revistas, cassetes. Tínhamos acesso a isso tudo. Olha, estavas a falar de comida e, de repente, passaste para a música. Achas que existe uma relação entre a gastronomia e a música?
Se estiver a ouvir uma boa música e a cozinhar, claro que sou capaz de fazer alguma coisa interessante [risos]! Acho que a música está ligada a todos os aspectos da vida. Por ser uma coisa fácil de aceder — a qualquer momento tens acesso a música. Essa ligação com a gastronomia cabo-verdiana era uma questão interessante, podia mesmo tentar analisar a base da composição dos pratos cabo-verdianos com a forma da composição da música cabo-verdiana, mas sinceramente a única relação que vejo entre a música e a comida é eu estar a cozinhar, a ouvir boa música, logo vou ter muito mais sensibilidade para apurar o sal, tentar cortar os legumes e mexer a panela no ritmo. A música é uma das formas de arte que acompanha quase tudo e está presente em tudo. Esta é a Dona Iva. Tu sempre quiseste ser músico, mas quando vieste para Portugal foi para estudar gestão de desporto…
Estava naquela fase de adolescente que quer bazar. Comecei a sentir que a ilha tinha a minha casa, a minha família, os meus amigos, que era um bom aconchego, mas queria mais. E então concorri para várias universidades em Portugal, tive esse apoio da minha família para vir estudar. Entrei no ISMAI, num curso de gestão de desporto, e pensei que apesar de não ser bem aquilo que eu queria, era uma boa forma de sair e procurar um mundo novo. Vim estudar, mas continuei ligado à música, continuei a compor e a estudar guitarra por mim, fui partilhando aqui, partilhando acolá, ganhando conhecimento… E por que é que decidiste cá ficar, quando acabaste o curso?
Decidi ficar porque achei que Portugal era uma plataforma interessante para expandir a minha música. Não é que Cabo Verde esteja longe do mundo, mas estaria um bocadinho mais atrás, porque é um espaço pequeno, os músicos não têm tanto essa hipótese de viver da música e torná-lo em algo profissional, que era o que eu queria e quero fazer, até hoje. Claro que Portugal também não é um circuito fácil, toda a gente sabe, mas também não estou aqui para fazer essa conversa repetitiva: eu adapto-me à forma de viver musicalmente em Portugal. Vou fazendo aquilo que me aparece, com muito respeito e dedicação por cada concerto, seja ele na Casa da Música ou no Festival de Sines. Aquilo que eu faço é aquilo em que acredito e faço com cada vez mais profissionalismo. Por isso é que também me vou mantendo em Portugal, para me manter próximo das coisas. E neste momento a tua música ainda tem muito de Cabo Verde?
A minha música é baseada em toda a questão tradicional que existe em Cabo Verde. Ouço muita música antiga cabo-verdiana, tento saber os estilos, saber como se fazem e respeitar essas formas, não na minha música, mas no processo da composição. Saber o porquê de fazerem aquilo, para quando pegar nessa base poder moldá-la à minha maneira. Claro que a minha música respira de uma forma diferente. Tem outra influência, porque é a questão daquilo que eu vivi, daquilo que eu ouvi, que tive contacto, e é daí que aparece a minha música, a minha forma de me expressar. Vejo a música como uma cultura, tem diferentes cores, diferentes nacionalidades e depois pinto o quadro à minha maneira: um bocado de amarelo da China, de vermelho do Brasil — e a minha base de Cabo Verde não é a tinta, é a tela! Que bonito! Então, e voltando à questão da comida, se tivesses de traduzir a tua música num prato, qual seria?
Seria, sem dúvida, um prato muito ligado ao mar. Tenho uma ligação muito forte com o mar, está muito presente na minha música. Seria para aí uma dourada grelhada, com um bocadinho de arroz branco, uma saladinha de tomate com cebola, umas azeitonas pretas. Aqui da zona de Mirandela, mandava vir especificamente de Mirandela, só para lhe dar o nome dourada à Bilan! Mas tinha de ser tema por tema — depois até podia haver um polvo [risos]… Em Cabo Verde, eles chamam a isto pequeno-almoço. Faz sentido, afinal estás a fazer um disco chamado Ilha.
Estou no processo de edição, mas o disco já está feito há muito tempo. Como é uma coisa um bocado auto-sustentada e acaba por se ter custos com isso, tenho de esperar pela melhor oportunidade para fazer essa edição. O disco foi gravado aqui no Porto, com o Madou Sidiki, do Mali e músicos aqui do Porto, como o Manel Cruz dos Ornatos e outra malta amiga — malta da música, que faz as coisas pela música e não fica à espera de nada. O disco está aí, pronto para ser lançado, quando tiver a sua oportunidade. E também já tinhas outro projecto lançado, não?
Gravei em 2011 na Casa da Música o Sur le Niger, que surgiu de uma viagem que eu fiz ao Mali, a um festival com o mesmo nome, em que constroem um palco em cima do rio [Niger]. Conheci aí um músico maliano, o Madou Sidiki Diabaté, e fiz um disco com ele ao vivo, na sala Suggia. É um disco online, gravámos o disco ao vivo e gostámos daquilo que tínhamos feito, por isso decidimos partilhar, para não deixar apodrecer em casa. Criámos um perfil no Bandcamp e as pessoas podem ir lá fazer o download grátis. E agora estás de volta à Casa da Música.
É sempre fixe tocar na Casa da Música, seja onde for. Acho que já toquei em todos os sítios da Casa da Música, é sempre bom tocar, adoro tocar ao vivo. Gosto muito de fazer música e fico sempre entusiasmado, sinto sempre aquele nervosinho antes do concerto, aquela responsabilidade. Pronto, então: bom apetite!