O negroni perfeito é feito com sangue e lágrimas

Esta matéria foi originalmente publicada no MUNCHIES US.

Anthony Zhong. Todas as fotos são da autora.

Há muito mais no Negroni de Anthony Zhong do que doses iguais de gim, Campari e vermute. Vejo o cingapuriano fazendo o mis en place atrás do balcão do bar que ele comanda como sócio, o Shin Gi Tai.

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Não foi casual o modo como Zhong aprendeu a arte de preparar bebidas.

Dez anos atrás, ele trabalhava em um restaurante japonês em Singapura quando começaram as obras de um bar japonês logo ao lado. Quando o bar finalmente abriu, Zhong fazia questão de ser um bom vizinho e dava uma passada lá para tomar alguma coisa depois do trabalho. Aos 21 anos de idade, ele não sabia absolutamente nada sobre drinques.

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“Ainda não existia a moda do bar especializado em coquetéis na época”, conta. “Eu ficava lá sentado meia hora e pedia um Bailey’s com gelo.”

Os bartenders não o recriminavam pelo pedido. Mantinham a seriedade e esculpiam uma esfera de gelo para a bebida, da mesma forma que fariam para qualquer outro drinque.

Cerca de três meses depois, Zhong foi convidado a se unir à equipe. O gerente disse que o mandaria passar três meses em Tóquio fazendo um treinamento sem compromisso. Se ele odiasse o trabalho, poderia considerar uma viagem de graça para o Japão.

Zhong se dedica aos mínimos detalhes.

Ele aceitou a oferta, mas o começo foi difícil.

“Eu tinha uma ideia na cabeça”, disse Zhong: ” 100% — quero sair desse emprego.

O mundo dos bares japoneses era completamente diferente da experiência que Zhong tinha. As broncas eram pesadas e era comum ser humilhado na frente dos colegas e clientes por cometer erros. Ele trabalhava 16 horas por dia. E os dias começavam espremendo muita fruta cítrica.

“O ácido entra na pele e começa a ressecar, e toda noite rachava as mãos”, conta Zhong. “Todo dia de manhã, eu acordava e tinha marcas de sangue nos meus travesseiros”, relembra ele que continua: “E todo dia você espreme mais suco, e o suco entra nas feridas. E aí sabe o que os japoneses falam? Que é um sinal para você acordar. Para focar mais no trabalho.”

“Eu tinha passado dois anos no exército, mas isso foi mais sofrido. Era dor todo dia.”

Lascando gelo esculpido à mão.

Zhong já estava quase pedindo demissão quando mudou de ideia. Se o sensei e os colegas conseguiam trabalhar assim há 13 anos, por que ele não aguentaria um mês? Abraçou o sofrimento e continuou o treinamento em Ginza por cerca de dois anos.

Hoje, o bartender prepara drinques utilizando as técnicas que aprendeu à base de muita dor no Japão.

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“É muito diferente do estilo europeu e do americano”, afirma. “Na técnica envolvida no Shin Gi Tai, nossos movimentos são mais elegantes, como de um bailarino.”

Ele não apressa a técnica. Todo movimento é preciso e atencioso. Se acabam os copos, ele não corre para lavar a louça e te servir a bebida em um recipiente quente. Zhong foi treinado para não trabalhar com atalhos nem desculpas.

Nítido como vidro.

“Se você começa a se enganar, vai se enganar sempre.”

Zhong também não acredita que você precisa se esconder atrás da bebida alcoólica mais cara. Ele testemunhou isso quando seu ídolo no Japão preparou um dry martini que o levou ao esclarecimento, e foi um drinque feito com Gordon’s. É o método que garante um excelente coquetel.

“Se você tem uma técnica muito boa, não importa o gim que você usa”, explica Zhong. “Você pode preparar um coquetel excelente. A isso se chama técnica.”

Depois da entrevista, Zhong começa a fazer um negroni para mim. Assisto ao treinamento manchado de sangue no Japão culminar em manobras graciosas atrás do balcão. O resultado é um drinque perfeito.

Um produto final executado com perfeição.

“Um negroni é só um negroni. Você entra numa livraria, pega um livro e lá vai estar escrito: ‘uma parte de gim, uma parte de vermute, uma parte de Campari, um pedaço da casca da laranja’. É muito simples.”

Fazer o negroni perfeito não requer o gim da mais alta qualidade nem o vidro mais gelado ou o gelo com o melhor corte. O melhor negroni é feito por Zhong porque ele se importa. Ele chega às lágrimas só de lembrar de alguns mestres influentes que conheceu no Japão.

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Não é apenas a devoção incrível de Zhong ao preparo que torna o drinque perfeito. Ele tem a técnica para dar suporte à paixão e talvez batalhe mais que qualquer outra pessoa de Singapura. Ele trabalha meses a fio sem folga. Às vezes, dorme no bar para poder se preparar melhor para o dia seguinte. E não esqueça do terno com colete.

Se você está procurando o negroni perfeito, a busca acabou. Ele está escondido no segundo andar de um predinho construído antes da guerra em Singapura. E ele é preparado por Anthony Zhong.

Tradução: Aline Scatola

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