Este artigo foi publicado originalmente na edição especial de Música da Noisey e VICE 2017.
Na era online, são os curadores quem mandam. Josh Ostrovsky, humorista polêmico, conhecido nas redes como Fat Jew, publicou um livro com piadas alheias, chupinhadas de um feed de Instagram. Consumimos as notícias que o Facebook bem entende, e aplaudimos os remixes do DJ Khaled. Essa realidade fica ainda mais evidente no mundo do streaming de música, onde não pagamos mais por álbuns soltos, mas pelo acesso a um rodízio, incluindo todas as gravações já feitas. Em um mar de informações musicais, as entidades que detém mais poder — como o Spotify e a Apple — detém também os recursos para organizar e controlar a maré. À medida que esses curadores poderosos transformam a música em uma espécie de utilidade pública, subvertem também o que significa ser músico.
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“Não atuamos no segmento da música”, Daniel Ek, fundador do Spotify, contou à New Yorker em 2014. “Atuamos no momento.” Embora a declaração de Ek soe incongruente, é importante lembrar que o Spotify paga detentores de direitos autorais para poder reproduzir seus catálogos, de onde os algoritmos do aplicativo, movidos a dados, extraem músicas para recomendar aos usuários. O aplicativo também usa matéria-prima para preencher suas playlists, que giram em torno de gêneros superespecíficos (“Dance Festivo Cristão”, “Jazz Ornamental”), humores (“Melancolia”, “Doses Cavalares de Autoestima”) e atividades particulares (“Lidando com Perdas”, “Aperolzinho com as Bests em Pinheiros”).
Dado que o Spotify não divulga como exatamente seus algoritmos e criadores de playlists selecionam os destaques, os artistas que querem figurar nas listas contam apenas com a sorte grande — ou se viram e aprendem a usar as regras da economia do streaming a seu favor. O fantástico duo de música eletrônica The Chainsmokers contou à Billboard que iniciou sua carreira elaborando releituras animadas de músicas indie, numa tentativa de escalar as páginas do Hype Machine, site agregador de áudios de blogs. Por fim, conseguiram se tornar onipresentes ao lançar a música viral “#Selfie”, obra original que, numa só tacada, tirava sarro da cultura social online e se beneficiava dela. De um ano para cá, produtores lo-fi de house como DJ Boring e DJ Seinfeld –– cujas faixas misturam house clássico e indie pop relaxante –– contabilizaram milhões de reproduções no YouTube, em parte porque o algoritmo do site estabeleceu que, quando essas músicas começam a tocar automaticamente depois de um vídeo, o ouvinte passivo não se opõe. Quando o gênero começou a ganhar tração na mídia, os holofotes se voltaram para a sua ascensão algorítmica — maior que a ascensão dos próprios produtores.
Quando os serviços de streaming priorizam o que quer que seja que os dados mandam os assinantes ouvirem, a marca musical e pessoal de um artista passa a valer menos, e a capacidade de selecionar sons que representam músicas desejáveis, em termos algorítmicos, torna-se crucial. Uma funcionária de um grande selo indie, que preferiu manter o anonimato, disse que artistas com uma base considerável de fãs suam frio para conseguir algum lucro em streaming, pois suas músicas não se encaixam nos parâmetros dos algoritmos, ao passo que artistas menores superam expectativas no meio, pois suas músicas se adaptam às mais diversas playlists.
Não pagamos mais por álbuns soltos, mas pelo acesso a um rodízio, incluindo todas as gravações já feitas.
Um exemplo notório da inversão do streaming é a história dos “artistas falsos“. Sob pseudônimos, artistas desconhecidos –– afiliados a uma produtora isenta de royalties que compartilha um investidor com o Spotify –– acumulam milhões de reproduções por fazerem parte das playlists de música ambiente do serviço. Quando o Spotify foi questionado, um porta-voz disse ao New York Times: “Estabelecemos uma necessidade de conteúdo. Trabalhamos com pessoas interessadas em produzir conteúdo.”
Em última instância, o tratamento da música como um widget genérico e automatizado é o verdadeiro grande desafio para os artistas na era do streaming — e não os pagamentos pífios para os artistas, ou os incentivos para entrarem no jogo. Até pouco tempo atrás, havia uma distinção clara entre composições artísticas e música de elevador. O streaming deixa a linha tênue e nos encoraja a olhar para todos os estilos e gêneros como ferramentas para criarmos “momentos” memoráveis.
Nessa economia voltada para o momento, alguns músicos talvez precisem abdicar da ideia de viver da arte. É como um amigo músico disse: “Trabalhar em um expediente de oito horas é bem menos estressante do que despender tempo para entrar no jogo do Spotify”. Se não tomarmos cuidado, passaremos a viver em um mundo onde músicos não são mais artistas e, sim, “criativos”, membros de uma classe nebulosa de pessoas que produzem música para barbearias e aulas de academia, falsos revolucionários de jeans apertadinhos e tatuagens mil. Capaz que acordemos um dia e notemos que os músicos ficaram obsoletos. Não é exagero. O Google está tentando aprimorar suas redes neurais para criarem músicas, e o Spotify contratou um cientista da computação especializado em ensinar inteligência artificial a emular estilos musicais populares.
Contudo, antes de combatermos um futuro governado por máquinas como se estivessemos em um filme do Exterminador do Futuro, vale lembrar que nem todo artista visa ganhar dinheiro acima de tudo. Aqueles que criam com paixão e produzem trabalhos que contestam esse mundão cada vez mais confuso e alienante não vão desistir só porque um programa de computador não coloca suas músicas numa playlist de café da manhã. Se por acaso a tecnocracia vencer e isso virar realidade, é torcer para que o ouvinte descubra a música e depreenda sentido dela depois da refeição.
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