Djamila Ribeiro, a voz da consciência negra feminina no Brasil

As longas tranças nos cabelos negros, a roupa estampada e o batom colorido revelam muito. É o que me explica a filósofa Djamila Ribeiro, 36. O que poderia parecer apenas adornos de beleza, para ela, são sinais de orgulho da pele preta, da cultura afro e de seus antepassados. E, apesar do riso fácil, Djamila, que me recebeu para uma entrevista em seu gabinete na Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo, onde é secretaria adjunta, não perde a seriedade ao falar de assuntos que tanto a incomodam e que pautam sua atuação política e profissional: o racismo e o feminismo.

Batendo ponto na secretaria desde maio último, Djamila também é mestre em Filosofia Política, colunista do site da Carta Capital e se tornou uma das principais referências do movimento negro feminista no Brasil.

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No nosso encontro, a secretária adjunta comemora a implantação de programas como o “Juventude Viva”, que concedeu bolsas para 101 jovens se dedicarem aos estudos; a formação em direitos humanos para 40 mil professores da rede municipal e o atendimento psicosocial para mães que perderam filhos vítimas da violência policial.


Djamila durante a entrevista. Foto: Felipe Larozza/VICE

Na nossa conversa, Djamila conta que teve os primeiros contatos com o movimento negro ainda na infância passada em Santos, cidade do litoral paulista, graças à influência do pai, um estivador, militante e comunista. “Desde muito cedo, eu e meus dois irmãos vivemos nesse meio. Com seis anos, já íamos para atos. A gente debatia esses temas em casa, e meu pai nos fazia estudar a história do nosso povo”, relembra.

Com um misto de orgulho e saudade, ela relata que o pai, mesmo tendo pouco estudo, era “extremamente culto” e tinha uma biblioteca com mais de 300 livros em casa. Foi ele quem escolheu o nome Djamila, de origem africana.

O movimento feminista entrou na vida da filósofa aos 19 anos, quando conheceu a ONG Casa de Cultura da Mulher Negra, em Santos, onde trabalhou por cerca de quatro anos. “Lá eu comecei a ter acesso a obras de feministas e de mulheres negras e a entender que a minha luta seria por essa perspectiva”. Atualmente, Djamila se tornou um dos principais nomes do movimento no Brasil.

Segundo ela, o empoderamento — seja através dos debates, das roupas e do cabelo — dos movimentos negro e feminista é resultado de um “trabalho histórico, que vai ganhando mais resultado à medida que as pessoas vão adquirindo mais consciência”. Djamila reconhece que a internet abriu o espaço para que essas questões, que não eram e não são discutidas na mídia tradicional, tenham mais visibilidade. “É um lugar onde pessoas negras passam a existir.”


Djamila: “A gente precisa mexer nas estruturas para conseguir, de fato, garantir oportunidades mais iguais para população negra”. Foto: Felipe Larozza/VICE

A filósofa define o racismo como “estrutural e estruturante” e diz que o combate passa por políticas públicas e afirmativas na área da educação e representatividade na mídia “e em espaços que a gente possa se enxergar de maneira positiva”. Djamila defende ainda uma reforma política para que negros e mulheres tenham mais representantes. Nas palavras da própria filósofa: “A gente precisa mexer nas estruturas para conseguir, de fato, garantir oportunidades mais iguais para população negra”.

Na entrevista em tópicos abaixo, Djamila fala sobre Dia da Consciência Negra, feminismo, racismo, política e o lançamento no Brasil de Mulheres, Classe e Raça, o clássico de Angela Davis que em sua primeira edição nacional tem prefácio da nossa entrevistada.

A entrevista foi editada para melhor compreensão:

“Mulheres, Raça e Classe”

O Mulheres, Raça e Classe foi publicado [originalmente] em 1981 nos Estados Unidos e a tradução chega só agora no Brasil, em 2016, 35 anos depois. Mas eu acho que [o livro] ainda traz um debate muito atual que é o de pensar as questões de classe, raça e gênero interseccionadas e, sobretudo, do ponto de vista da mulher negra, pensando a emancipação a partir de um ponto de vista anti-capitalista, anti-racista e anti-sexista. Ainda hoje, existe uma resistência muito grande de fazer o debate racial. A esquerda clássica pauta muito a questão somente pelo viés de classe. E no Brasil ainda tem muita resistência em pensar a questão de raça de maneira profunda. Acho que vai muito por conta dessa resistência, inclusive da esquerda, de querer eleger qual opressão é mais importante colocando classe como mais importante e não percebendo que essas categorias, na verdade, são intercruzadas.

Os negros nos Estados Unidos são 15% da população e aqui no Brasil, somos 52%.

Nos Estados Unidos, estão acontecendo esses confrontos, mas lá, a coisa é muito diferente. Quando negros são assassinados pela polícia, como aconteceu em Ferguson, a população vai para as ruas mesmo. Aqui no Brasil, a gente ainda naturaliza [a morte de negros]. Lá existe o “Black Lives Matter” e tantos outros movimentos. Tem um enfrentamento mais direto. Lembrando que os negros nos Estados Unidos são 15% da população e aqui no Brasil, somos 52%. Lá, de fato, os negros são minorias. Mas existe outro entendimento do movimento negro nos Estado Unidos, porque lá o racismo era constitucional. O negro sempre soube que tinha um problema, sabia que não podia entrar em tais lugares, que ia ser morto se fosse para determinado bairro. Então, como [o racismo] era extremamente declarado, não existia outra maneira a não ser o enfrentamento. Aqui no Brasil, como se criou esse mito da “democracia racial”, de que todo mundo se ama e todo mundo é legal, muitas vezes o próprio sujeito negro tem dificuldade para entender que nossa sociedade é racista.

O Trump ter ganhado [as eleições nos EUA] nada mais é do que a representação do pensamento dessa sociedade norte-americana racista e segregacionista.

O Donald Trump ter ganhado não é me surpreende. Pelo contrário, se a gente parar para pensar, em 1960, que em termos de história foi ontem, tinha segregação racial constitucional nos Estados Unidos. Os negros não podiam estudar nas mesmas escolas que brancos, não podiam frequentar os mesmos espaços, nos ônibus tinham que sentar no fundo. O que vem vencendo historicamente é essa supremacia branca nos Estados Unidos. Claro que existiram políticas importantes afirmativas, avanços importantes, como a eleição do primeiro presidente negro [Barack Obama]. Mas não diminuíram os assassinatos e o encarceramento da população negra. A lógica nunca mudou. Até hoje, tem algumas cidades do sul [dos EUA] com segregação. Então o Trump ter ganhado [as eleições nos EUA] nada mais é do que a representação do pensamento dessa sociedade norte-americana racista e segregacionista.

Não dá para falar em consciência humana enquanto pessoas negras não tiverem direitos iguais e sequer forem tratadas como humanas.

As pessoas ainda têm muita resistência [para entender a importância da data]. Tem gente que questiona “por que não [um dia da] consciência branca ou consciência humana? É um senso comum absurdo porque não dá para falar em consciência humana enquanto pessoas negras não tiverem direitos iguais e sequer forem tratadas como humanas. A gente tem que afirmar “Consciência Negra” justamente porque o racismo existe. O [feriado] é uma maneira de lembrar do Zumbi dos Palmares, que é um grande ícone do movimento negro, lembrar da luta anti-racista no Brasil, serve para gente conhecer a história do nosso país por um ponto de vista da população negra porque ela ainda é muito contada pelo ponto de vista do branco europeu.

O Fernando Holliday é um produto dessa sociedade racista.

O Fernando Holliday é um produto dessa sociedade racista. A gente está em um país que nega suas origens africanas, um país que criou o mito da democracia racial, onde muitos negros não se veem como negros. Até porque quem quer ser negro, quando ser negro significa ser feio, ter o cabelo ruim, ter as piores oportunidades? O racismo aliena porque é difícil bancar ser negro em um país racista. É muito comum encontrar pessoas negras que reproduzem esse discurso. Não porque elas têm consciência, mas porque a gente é ensinado desde cedo que o negro é feio e não se enxerga positivamente em nenhum espaço. É muito mais fácil adotar o discurso do colonizador. O Fernando tem de ser combatido politicamente. As pessoas querem pegar um bode expiatório para ser o grande culpado pela manutenção do racismo no Brasil, mas as pessoas brancas não se questionam sobre o papel delas [no racismo] e não falam dos privilégios que carregam, não querem discutir o papel e a responsabilidade delas para enfrentar a sociedade racista. Ser negro não é condição inerente para ter consciência sobre racismo, assim como ser mulher não é condição inerente para saber sobre o machismo. A gente aprende quando entra nos movimentos ou começa a ler sobre isso.

Por conta da demonização das religiões afro-brasileiras pelo cristianismo — que tem como base o racismo —, muitos professores cristãos não sabem separar sua religião da profissão.

Existe a Lei 10.639, de 2003, que altera a lei de diretrizes e bases da educação para incluir a obrigatoriedade do ensino da história africana brasileira nas escolas. Só que a lei não está sendo cumprida na sua totalidade. Esse é o problema: tem a lei, mas não há políticas públicas ou vontade política de alguns governantes para botar a lei em prática.

É importante que gestores públicos tenham a preocupação de fazer a lei ser efetivada para as crianças terem desde muito cedo uma história contada por outro olhar. É importante para todo mundo: para a criança negra que vai ter a autoestima de se reconhecer naquela história e para criança branca entender que existem outras histórias e respeitar as pessoas que são diferentes dela. Além disso, por conta da demonização das religiões afro-brasileiras pelo cristianismo — que tem como base o racismo —, muitos professores cristãos não sabem separar sua religião da profissão.

As pessoas [no Brasil] acham que racismo é só no campo do indivíduo, quando alguém xinga alguém.

Desde o período escravocrata, a população negra é tratada com muita violência. Tinha a figura do capitão do mato para perseguir os escravos que fugiam e a população negra era tratada como mercadoria. No pós-abolição, essa realidade muda, mas a violência começa a se dar de outras formas. Em 1941, tem a “Lei da Vadiagem”, que significava prender pessoas negras que estavam na rua. Então começa a se criar formas de encarcerar essa população e de vê-la como violenta. O Estado pensa essa questão no sentido da repressão e violência, não como garantia de direitos. Isso é algo histórico, que se perpetua porque no Brasil há uma resistência em se discutir de fato o que é racismo. As pessoas acham que racismo é só no campo do indivíduo, quando alguém xinga alguém. Não entendem o raciso como sistema de opressão, que nega oportunidades e violenta a população negra. Não percebem que o racismo é estruturante e estrutural.

O racismo está em tudo.

Como a gente não faz um debate sério sobre o que é o racismo, as pessoas não entendem que certas situações são racistas. Por exemplo dizer: “Você é negra, mas é bonita”, ou “Ah, você não é tão negra assim”, como se dissesse “não se deprecie tanto”. Porque ser negro é associado a algo ruim. As pessoas não percebem porque está muito impregnado na nossa cultura e no nosso inconsciente coletivo, reproduzem sem refletir criticamente sobre essa questão. O racismo está tão naturalizado no Brasil que as pessoas não percebem o quanto ele é violento. O sujeito negro que reclama ainda é visto como “o que se faz de vítima”, “aquele que está vendo coisa onde não tem”. O racismo está em tudo. Não existe nenhum espaço livre de racismo na sociedade.

Se a mulher branca, por sofrer machismo, já está numa situação de desvantagem em relação ao homem branco, a mulher negra, aliada ao racismo, está numa situação muito pior.

O racismo já é uma opressão estruturante, aliado ao machismo, coloca a mulher negra em uma situação de muito mais desvantagem. Não é à toa que a mulher negra é o grupo que mais sofre violação, que está na base da pirâmide social e que mais sofre o peso do capitalismo. Somos a maioria entre as empregadas domésticas, justamente por conta desse nosso ranço escravocrata. Se a mulher branca, por sofrer machismo, já está numa situação de desvantagem em relação ao homem branco, a mulher negra, aliada ao racismo, está numa situação muito pior. A Angela [Davis] fala que não dá para pensar nessas categorias isoladas porque raça informa classe e o racismo cria uma hierarquia de gênero, colocando a mulher negra numa situação muito maior de vulnerabilidade.

O movimento negro ainda tem um olhar muito masculino e o movimento feminista, muitas vezes, tem um olhar muito branco. Então, se é mulher e negra, onde é que você se encaixa? As mulheres negras são o grupo que acaba sofrendo mais. Sofre mais estupro, mais violência doméstica e na mão do Estado, sobretudo, na questão da saúde, com altos índices de mortalidade materna de mulheres negras e da violência obstétrica sobre essa população.

As pessoas brancas passam a vida inteira sem ter um professor negro e nem sequer se incomodam com o porquê disso.

A gente não consegue acessar [as universidades] e quando acessa, somos poucas. E para quem está na academia também não é fácil porque temos uma produção acadêmica eurocêntrica branca e masculina. A nossa produção intelectual não é apresentada para nós. Eu estudei Angela Davis e outras autoras negras por conta [própria]. Não foi a academia que me proporcionou isso. Também tem também a solidão de muitas vezes você ser a única negra dentro da sala e ninguém perceber isso como uma violência. As pessoas brancas passam a vida inteira sem ter um professor negro e nem sequer se incomodam com o porquê disso. Quando eu estava no mestrado e era a única pessoa negra da turma toda. Ficava muito incomodada, mas os outros achavam que tudo era normal.

A mulher negra também tem o direito de ser frágil.

A mulher negra periférica é obrigada a sobreviver, tem que trabalhar para sustentar a família. Mas o fato de ela ter de trabalhar, ter de estar na rua não significa, necessariamente, que ela tem consciência feminista para outras coisas. O trabalho, o fato de ela ter de ser forte, guerreira é uma imposição do Estado, que é omisso. Eu não gosto de colocar a mulher negra inerentemente forte porque acho que é desumano. Eu também tenho direito à fragilidade. Eu sou uma pessoa como outra qualquer, tem dia que estou triste, que eu me sinto fraca. Nós somos fortes sim, mas querer naturalizar isso é escamotear a omissão do Estado. A gente tem que ser forte porque as oportunidades não são iguais, porque a realidade é muito violenta. A mulher negra também tem o direito de ser frágil e de não ter que carregar o mundo nas costas.

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