Matéria originalmente publicada no Noisey US.
Quando Charles Bradley era mais novo, morava na Califórnia e trabalhava num restaurante, alguma coisa aconteceu. Um cliente se zangou com o ponto de um hambúrguer, então ele foi lá e pediu desculpas. O proprietário ficou furioso por vê-lo falando com os clientes, o chamou de crioulo, e falou que “daria um corretivo” nele. No dia seguinte, quando Charles voltou ao trabalho na cozinha, um branco grandalhão chegou da rua e começou a dar-lhe uma surra. “Antes que eu percebesse, ele me pegou e me empurrou por cima da grelha”, diz Charles, estremecendo. “Eu senti o calor subindo para as minhas costas, e eu tentava lutar de todo jeito pra tirar aquele cara de cima de mim.”
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Os policiais chegaram e “colocaram a arma na minha cabeça”, de acordo com Charles. Ele foi para a cadeia e ficou 30 dias preso até o julgamento – ao qual o agressor não compareceu – e assim foi sentenciado a três anos de liberdade condicional. Ele está me contando essa história porque quer que todos saibam como é difícil para ele entrar no Canadá e “espalhar o amor com a sua música”.
O músico de 66 anos, que lançou seu primeiro disco aos 62, não viveu pouco. Passou a maior parte da vida indo e voltando das ruas, vivendo em conjuntos habitacionais e em sofás, cantando como imitador de James Brown antes de, por fim, encontrar seu caminho com a Daptone Records. Há alguns anos, um documentário chamado Soul of America tentou contar sua história, explicando como exatamente um homem conseguia lançar um disco de estreia em tal idade. No último fim de semana, no lendário Apollo Theater, na cidade de Nova York, a Daptone colocou todos os seus artistas, incluindo Charles, para gravar um disco ao vivo.
Em nossa conversa de uma hora, ao mesmo tempo cheia de alegria e de lágrimas, que teve lugar em um sofá de couro no apartamento do músico do soul no bairro Bed-Stuy, do Brooklyn, ele constantemente dizia que morria de medo de sair na rua, mas que gostaria que todas as pessoas do mundo olhassem para dentro de si mesmas e dos seus corações. Por trás dos grandes olhos castanhos de Charles há um homem afável, corajoso e bondoso. Ele é alguém que já tomou porradas na cara mais vezes do que consegue contar, mas, ainda assim, acredita que o grande barato da vida é aquele momento logo antes de dar o primeiro beijo em alguém.
Noisey: Você tem uma história incrível.
Charles Bradley: Posso te contar tudo. Tem tanta coisa sobre a qual eu posso ficar conversando. Meu empresário quer que eu escreva um livro. Tipo agora, a minha mãe fez esse apartamento aqui. Eu estava vivendo num conjunto habitacional, e ela disse que lá eu apanhava muito, e pediu que vendesse a casa que ela tinha antes. E vendi a casa, e ela entrou com o pagamento. Esse apartamento era dela. O plano era deixar o porão para mim, e ela ficaria com o apartamento. Quando conseguimos essa casa – o vendedor sabia que a gente estava muito interessado nela, então eles apressaram tudo, improvisaram. Toda vez que chovia, o porão inundava, então eu não podia ficar lá embaixo. Minha mãe fez com que fosse possível, hoje tenho uma casa. E parece tipo: “ah, esse cara está bem de vida”, mas já fui ao inferno e voltei. Eu me viro sozinho desde os 14 anos, e vi muita coisa. Se estou fora de casa, na rua, estou sempre fazendo algo positivo com a minha música. Fora isso, fico em casa. Tenho muito medo de sair em público. Você vê na TV todas as coisas dramáticas que acontecem hoje em dia, eu não quero me envolver com isso. E aprendi a não odiar nem desprezar ninguém, só mantenho distância.
E quando você chegou a essa conclusão? Hoje você tem 66.
É assustador, cara. De verdade, aqui dentro do meu peito, o mundo lá fora assusta. Se não estou lá fora fazendo algo de positivo, estou em casa, fazendo alguma coisa para me manter ocupado. E agora fico mais bravo, porque as pessoas dizem: “ah, ele tem isso, e agora ele acha que é isso”. Não sou melhor que ninguém que está lá fora batalhando. Só tento segurar firme e cuidar do que eu tenho. Porque dizem que você pode não conseguir o que deseja, mas cuidar do que tem. Vejo gente me invejando, e me pergunto porquê. Porque eu me endireitei com muito esforço, e para ser sincero puxei muitos sacos, porque queria vencer na vida. E penso na minha vida, e não vejo nada para mim que não seja gueto e mundo corrupto. Então puxo sacos para continuar seguindo em frente, mas pelo menos faço isso com honestidade.
Aqui está a estreia de um clipe ao vivo de “Strictly Reserved for You”, do disco mais recente de Bradley, Victim of Love . O vídeo é da série Live From the House of Soul, da Daptone (filmado no quintal deles, em Bushwick), e dirigido pelo diretor de Soul of America, Poull Brien.
Você enfrentou dificuldades por muito tempo – morando na rua, nos conjuntos habitacionais, cuidando da sua família, lidando com a morte da sua mãe. Essa é uma questão bem ampla, mas o que essas experiências todas te ensinaram sobre a humanidade?
Uma coisa que aprendi sobre isso, sempre soube que tive medo de mim. Vamos falar da época de antes de você nascer. Lá em Gainesville, Flórida, quando eu morava com a minha vó, tinha uma linha lá aonde a gente vivia. Os pretos não podiam cruzar essa linha. Mas tinha sempre um homem branco que vinha me pegar – eu tinha uns seis ou sete anos –, ele vinha e me pegava e passava pela cerca comigo. Eu não sabia nada sobre racismo ou sobre pretos e brancos. Sempre encarei como pessoas mesmo. Mas ele sempre me levava, e me dava uma casquinha de sorvete. Naqueles dias, a TV não era tão comum igual ficou, e eu nunca tinha visto uma TV na minha vida. Ele tinha uma TV, e eu sempre dizia: “como é que as pessoas entram lá dentro? Como elas entram no tubo de imagem?”. Ele dizia: “pelo fio”. Então estou eu lá no chão olhando para o fio, tentando entender como é que eles passam por aquele fiozinho pra chegar lá. Esse homem sempre foi lindo comigo, mas eu não era para ficar na companhia dele. Minha avó sempre dizia: “Charles, cadê você?” e ele me devolvia dizendo: “não conta pra sua avó”, e ele me ajudava passar por cima da cerca. Eu dizia: “vó, eu tava brincando embaixo da casa”.
Eu não tinha a menor noção de segregação social até Martin Luther King. Hoje estou crescido e olho para essa sociedade, como ela foi mudando, e vi como a coisa da raça aconteceu pela TV. Os pretos dizem: “Charles, você é um puxa-saco”, os brancos dizem: “Charles, descubra quem você é e o que você faz”. Estou tentando achar algo grandioso dentro de mim, que somos todos filhos de Deus; por isso foi que Deus fez tantas rosas lindas de cores diferentes. Não por causa do que existe dentro de você, o que você sente. Então é assim que me sinto hoje, e é por isso que é tão assustador. Estou andando por um caminho muito sensível agora, em que os pretos têm muita inveja de mim. E estou dizendo: não me invejem. Vocês também têm o dom, lá dentro. Mas tive que ir lá para dentro de mim e encontrar, e foi assustador. Simplesmente porque, se você for odiar todos os homens brancos, a gente nunca que ia estar na situação em que está hoje. Alguns deles têm amor mesmo, alguns não. O mesmo vale para os pretos também. Quero que seja um arco-íris. Tipo, um gato chinês, um cara preto, um cara espanhol, e aí eu vou ser mais inteiro. E é isso que eu quero fazer, mas eles ainda estão numa categoria exclusiva deles. Não estão prontos para se abrir, para crescer, e quero ensinar a eles como crescer, e como o meu coração para por um instante. E quando digo que para por um instante, é verdade mesmo. Eu amo todo mundo, e quando vejo alguma coisa que lá dentro tem uma parte cheia de trevas, fico pensando: como posso mudar isso?
Como foi para você quando a sua mãe morreu?
Eu estava sentado nesse sofá, e ela mandou que eu chegasse lá no quarto. E entrei no quarto, e minha mãe disse: “filho, eu só quero agradecer por você ter cuidado de mim”. E eu: “mãe, eu vou ficar com você até o fim. Não quero que você me deixe aqui, mãe”. Ela disse: “filho, a mamãe está cansada. Preciso ir”. Eu costumava ficar sentado aqui, olhando ela gemer e grunhir e sofrer, e não queria que ela fosse embora, mas sabia que ela tinha que ir embora. Desci lá embaixo, peguei no sono, e no dia seguinte minha sobrinha veio. Ela estava batendo na minha porta mas eu estava dormindo profundamente, então eles me chamaram no telefone e ela disse: “Charles, sobe aqui, a vó não está respirando”. Pulei e fui subindo, e quando olho pra ela, os olhos tavam só um pouquinho abertos. A mão dela tava fria; o coração ainda estava quente. Fiquei louco, pensei em me jogar pela janela. Tinha um show marcado para aquele dia, todos os ingressos vendidos.
E aí, você foi?
Fui. Nem sei como consegui. Desci no porão e perdi a cabeça. Tava chorando com tanta força, e meu Deus. Minha irmã Andrea foi pra lá e perdeu a cabeça. Minha irmã disse: “quero ver tudo”, e eu disse: “não consigo ver eles pondo minha mamãe no rabecão”. E fui e naquela noite toquei com o coração pra fora do peito.
Então essas coisas todas que a gente conversou, o negócio que você acabou de falar, a sua mãe falecendo, você vê tudo isso se manifestando na sua música?
Sim, por causa das pessoas para quem eu toco. Se eu viajo pelo mundo e abro o meu coração para o mundo, e dou o meu amor, as pessoas dizem: “Charles, obrigado por me ajudar”.
E como é isso para você?
Ah, meu Deus, ver eles chegando para mim, chorando e dizendo: “obrigado, Charles, faz muito tempo que eu venho carregando a minha cruz. Ouvir a sua música e o jeito que você se põe pra fora nela, eu sei que tem esperança também. Tem gente que diz que aos 57, 60 anos a vida acabou, mas você ainda está doando o seu amor”. Isso fez sentir que eu tinha dado uma coisa boa para o mundo.
Foi isso que me atraiu à música. Alguma coisa ali cria uma ligação imediata com quem ouve. Dá pra sentir nas músicas.
Te digo a verdade, cara, não tenho nada que mentir. Minha sobrinha diz: “por que você tá falando de mim pras pessoas?” e eu digo: “porque é verdade”. E ela disse: “eu não digo nada sobre você”, e eu digo: “você pode contar para todo mundo qualquer coisa que quiser sobre mim, porque se é verdade, é verdade”. Minha vida é um livro aberto mesmo. Se eu fechasse a minha vida e deixasse isso tudo acumular dentro de mim, sei o que ia acontecer. Mas eu deixo aberta.
Que efeito você espera que a sua música tenha?
O que espero é que, se você ligar no noticiário hoje à noite, quero encontrar alguma maneira de fazer parar toda essa corrupção que eu vejo. Quero me usar como uma pessoa amorosa que vê esse mundo e vê o que vocês estão fazendo com as pessoas boas. Que vocês estão matando elas com a corrupção. Toda vez que vejo o jornal, vejo os anos 60 voltando. E não quero ser parte de nada disso; quero mudar tudo, transformar num lugar mais feliz. Sim, a gente está crescendo com tecnologia avançada e computadores, mas a humanidade está piorando. É assustador. Eu estou vendo, como é aquele negócio na Bíblia?
O Apocalipse?
Apocalipse. Estou vendo isso. O Apocalipse está muito perto agora. E estou olhando para ele; a gente não consegue ver. As pessoas que têm tudo, elas não veem. Está ficando muito assustador e eu estou vendo a coisa que tenho bem aqui, quando que eles vão tirar isso de mim? Mas aprendi a ser um sobrevivente. Não são as coisas materiais que vão ser minha vitória, é o espírito que vai ser minha vitória, e tenho que encontrar a força para seguir em frente.
Você teve uma vida imensa, cheia. Qual você sente que é o tema da sua vida?
Sinto que a vida costumava ser honestidade, amor, carinho, saber que você é uma pessoa de verdade e um filho de Deus. E agora o jeito que eu vejo a vida, o mundo não está nem aí, desde que eles consigam o que querem, do jeito que querem, como eles usam, não tão nem aí contanto que seja eu eu eu eu. E eu não vejo a coisa desse jeito.
Isso você diz da sociedade em geral ou é uma coisa da cultura?
Se eu abrir meu coração e me doar para uma pessoa, o mundo já diz: “ah, ele é um sujeito fraco, uma pessoa fraca”. E estou tentando mostrar a minha dignidade e sensibilidade, e quem eu sou. E eles não olham mais para isso. O mundo hoje vê o que você tem. Esse planeta inteiro é a nossa casa, e temos que aprender como viver. Muitas coisas eu vejo agora, sempre acreditei em amor, honestidade, trabalhe duro que você vai ser alguém, e agora não sei mais. Tudo o que importa é o que você tem, e é com isso que eu ainda estou vivendo.
Tenho 27 anos. Que conselho você teria para dar a alguém da minha idade?
Ah, meu jovem, eu tenho pena de você. De verdade mesmo. Vejo o jeito que você fala, me fazendo essas perguntas, tenho pena de você. A geração que você vive, a identidade que tem que encontrar, e amor e respeito. Mas eles vão te crucificar. Se você conseguir continuar sendo honesto e tendo amor, tudo o que posso dizer, do fundo da minha alma, que eu vivi, é: confie em algo maior. Tudo o que eu posso dizer é: você sempre vai ser o meu irmãozinho. Nunca deixe de confiar, é isso. Minha mãe diz que esse aqui não é o nosso lar; são os ensinamentos que você dá ao mundo, que você dá da sua alma para o mundo agora, enquanto está no seu corpo físico. Aqueles que desistiram e estão corrompidos, mantém o seu amor forte. Até o dia que você der o último suspiro nesse seu corpo, e esse corpo voltar para o pó, você vai entrar em uma vida maior, de jeito que não vai mais ter que se preocupar. O seu amor vai brilhar. Do amor que você deu aos seus irmãos e irmãs enquanto esteve nesta terra. É pesado, e dói, mas todos nós temos alguma coisa que a gente está disposto a viver por ela e morrer por ela. O que você prefere, morrer por amor ou morrer por ódio.
Eu morreria por amor.
Deu pra sentir. Você é um jovem sincero, buscando crescimento. As pessoas estão aí no mundo inteiro vivendo em suas próprias identidades. E é assustador; é muito, muito assustador. Agora não sei a onde pertenço, mas sei que estou em casa. É assustador, mas confie nos seus instintos e no seu coração. Saiba que existe dentro de você uma coisa que é real, e não abra mão da sua dignidade. Quando você vir alguma coisa que sabe que é errada, não jogue ela para lá. Não importa o que seja. Alguma hora você vai ser colocado sozinho em algum lugar. E daí vai dizer: “uau”. Eu disse isso muito tempo atrás: será que vou encontrar o amor verdadeiro, um amor verdadeiro para mim? Nunca encontrei. Venho buscando desde os 14 anos, e todo mundo diz que isso não existe. Mas eu não acredito nisso, eu ainda acredito que existe, sim. Tenho 66 anos de idade, e ainda acredito que existe. Doe o seu amor, e nunca mude. Esteja pronto para morrer pelo amor que carrega dentro de você.
Eric Sundermann é o Editor Executivo do Noisey. Siga-o no Twitter .
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